Chá com Letras Online: IA E VINHA -LEITURAS DEMIGUEL SOUSA TAVARES XXIX



LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XXIX
159.º ENCONTRO Selecção de Maria José Areal


IA E VINHA
21 de Setembro
Sempre achei, por experiências feitas, que os brasileiros são os melhores pilotos de avião que existem. E hoje, mais uma vez, confirmei-o, na ponte aérea Rio – São Paulo. Logo na saída do Santos Dumont, com o avião a ter de levantar decorridos escassos metros de pista e imediatamente curvar todo sobre a esquerda para evitar esmagar-se contra o Pão de Açúcar, e depois, na aproximação à pista de Congonhas, no meio de uma tempestade e de nevoeiro, quando, assim que consegui avista terra, já estávamos a rasar as antenas dos prédios e, dez segundos depois, o piloto já travava a fundo no asfalto, para não se espetar contra o prédio da frente. E estes loucos repetem este exercício de perícia cinquenta vezes ao dia, num sentido e no outro. E inda dizem que a Portela está cheia (quando é que se espera trinta minutos no ar por uma vaga para aterrar?) e que é perigosa e mais isto e aquilo…
Não tenho melhores leitores do que os leitores brasileiros, são raros os que não aparecem com mais do que um livro para assinar, os que não têm uma história para contar, os que não vêm com uma conversa sobre os meus livros que, às vezes, me comove mesmo até às lágrimas. E, a meu pedido, o Luiz marcou mesa na Figueira, para que pudesse comer o tucunaré, o tambaqui ou o pirarucu, os peixes do Amazonas. Faz pouco mais de um ano que aqui jantei também com eles, a Fáfá e o Milton Hatoum, que ficou muito surpreendido quando me viu pedir pirarucu. Hoje, fomos só nós (além do Zé Roberto Marinho Jr., na mesa ao lado, que acabou a partilhar o vinho que o Luiz sempre traz de casa e juntar-se a nós). O jantar, para mim, foi fantástico, com três pessoas inteligentes, cultas e sensíveis, ajudando-me a perceber mais e melhor o Brasil.
De manhã, antes de voltar de S. Paulo e de ir a um programa de TV, onde descobri que estava sentado ao lado do filho de Elis Regina, Manuel Ricardo (a quem não resisti dizer, em directo, que, se me dissessem que só poderia levar um disco para uma ilha deserta, escolheria um da Elis), ainda tive tempo de dar um salto à exposição do Cartier – Bresson. Simplesmente deslumbrante. Mais até, uma lição de história sobre o século XX, um olhar tão
demasiadamente humano e profundo que dá vontade de chorar. Há momentos assim na vida, em que nos sentimos tão próximos da beleza e da verdade que tudo o resto parece irremediavelmente fútil.
Miguel Sousa Tavares, NÃO SE ENCONTRA O QUE SE PROCURA – “21 de Setembro”, págs. 219,220 - 2001, Clube do Autor



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