LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XXVI
155.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
Ultimamente não me é fácil ver tranquilamente o D. Sebastião, do João Cutileiro – uma grande estátua de dois metros e meio de altura, talvez a sua obra mais conhecida, plantada na praça central de Lagos, no Algarve, sul de Portugal. O D. Sebastião tornou-se uma espécie de pelourinho da cidade, em cuja base repousam os turistas, namoram os namorados de Verão e, no Inverno, se sentam os locais. Eu próprio já por diversas vezes marquei encontros para o D. Sebastião, porque nada me ocorreu de mais óbvio como ponto de encontro em toda a cidade de Lagos.
Muitas vezes olhei para as pequenas esculturas do João e senti um desejo absurdo de que elas crescessem até ao tamanho de D. Sebastião. Porquê? Porque há nesta estátua uma leveza que desmente o seu tamanho, uma fragilidade que contradiz a sua consistência de pedra. Eu gostaria de ver crescer as coisas pequenas que o João faz – as meninas, as flores, os pássaros as bicas de água – só para ter a certeza de que nada se perde quando ele trepa pelos blocos de mármore acima como se se fundisse na própria pedra.
Este D. Sebastião, este jovem rei morto em combate no norte de África, eu vi-o nascer da obstinação do João. Vi-o nascer, literalmente, quando, há já muitos anos, visitava o João na sua grande casa de Lagos e o ia encontrar no edifício do outro lado da rua, os cabelos brancos de pó, as orelhas enfiadas em protectores, as mãos grudadas na broca e uma máscara sobre o nariz e a boca, emergindo de uma massa imensa de mármore com a qual trocava um obstinado combate corpo a corpo, de que só ele conhecia a chave da saída. Eu empurrava o portão que rangia e detinha-me diante daquele espectáculo impressionante. Então, quando me via, o João parava a broca, tirava os auscultadores, baixava a máscara e abria-me um sorriso doce de vampiro. Eu era miúdo, então, e confesso que sentia um misto de fascínio e de terror por aquele homem estranho, que ora via desentranhar-se da pedra, como um deus telúrico, ora via emergir das águas transparentes das praias de Lagos, de fato de mergulho e máscara, como um Leviathan ameaçador.
Além do mais, o João cozinhava – «coq au vin», em terra de sardinhas assadas -, corria a avenida de Lagos ao volante de uma desvairada BSA, sem capacete nem limites de velocidade, fotografava a preto-e-branco todos os amigos que entravam em casa, com a fidelidade irreparável de uma Leica, fumava, conversava e dizia coisas inesperadas. À sua volta flutuava uma eterna nuvem de pó branco, que era o que ele trazia de volta do seu excessivo corpo a corpo com esse bloco de mármore que viria a ser o meu tão íntimo, tão próximo, tão desumanamente belo D. Sebastião da praça central de Lagos.
Dezenas de anos passaram, desde então. Milhões de metros cúbicos de pedra domesticada nas suas mãos. Horas e dias e anos e eternidades de mármore para sempre quietas nos gestos que ele desenhou. E tardes e noites, desde então, passados no pátio de minha casa, ouvindo o som da água correndo pela bica que ele construiu, olhando o pássaro negro que ele esculpiu, eternamente buscando a frescura da água, verdade imanente de todas as coisas.
Também outras casas passaram, desde então. E outras cidades, para onde o João fugiu com o seu séquito de estátuas inacabadas, as suas montanhas de pedra por escalar, a sua eterna nuvem de pó sobre a cabeça. No fim de tudo, pagará um preço: estou certo de que será engolido pela pedra que tantas vezes contornou. Entrará pela montanha adentro, encontrará o veio que conduz ao coração do mármore, o silêncio das estátuas que, mais do que tudo, procurou. Habitará no corpo de D. Sebastião e a sua sombra no chão da praça, haverá uma nuvem de pó sobre a cabeça e um secreto sorriso de vampiro no rosto do jovem rei, pairando sobre a indizível alegria de todas as coisas.
Eis o que eu posso dizer do João Cutileiro: tenho um amigo que se transformou em pedra, mora numa nuvem de pó, desce ao longo do corpo das mulheres, faz de lua numa paisagem do Alentejo, transforma-se em pássaro que bebe nas fontes, engoliu o coração de um rei morto sem sepultura, fingiu-se flor e fauno, mergulhou no mar e disfarçou-se de alga e de polvo, entrou nas coronárias de mármore de uma montanha e foi mineiro, fechou-se numa casa branca com um portão verde e mora no fundo de um quintal entre guerreiros de pedra e plantas de cristal, mulheres de olhos oblíquos e corpo tenso, e outras sombras e sinais de um indecifrável silêncio.
Miguel Sousa Tavares – Não te deixarei morrer David Crockett – “O João Sebastião”, páginas 173/176, 2016, Edição Clube do Autor, S. A.
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