Chá com Letras Online: OFÍCIO DE ESCREVER II -LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XVII



LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XVII
145.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


OFÍCIO DE ESCREVER
PARTE II
(…)
“Cada livro é a antologia corrente da existência”? A minha resposta é não. Isso suporia, por um lado, que existiria tal coisa como uma antologia corrente da existência, e, por outro lado, que caberia ao escritor defini-la ou descrevê-la em cada livro. Mas isso seria a pior exigência que poderia ser feita a um contador de histórias, que era a de lhe retirar o direito essencial à mentira. Um livro, um romance, não é nem uma antologia, nem um relatório ou sequer um relato da existência. Apenas dá conta de que quem o escreveu estará provavelmente vivo – e essa é a única ligação à existência. À sua própria existência. Mas nem isso é certo e basta lembrar O Ofício de Viver, do Cesare Pavese, cuja frase – estava morto e não sabia -, afinal, prova-nos que, em certas circunstâncias, é possível continuar a escrever mesmo depois de já se ter morrido.
Mas também é verdade que, de certa forma, como escreveu Rosa Montero em A Louca Casa, “escrevemos sempre contra a ideia de morte”. Não no sentido de conquistar a imortalidade - que, essa sim, é uma vaidade que eu sou capaz de apostar que termina exactamente no segundo a seguir à morte, quando não antes. Mas, sim (e se bem me permito interpretar o pensamento dela), no sentido em que ao escrevermos sobre vidas que nos são alheias e inventadas para as nossas histórias, ao dispormos desse direito divino de darmos vida ou morte aos nossos personagens, talvez a ideia de morte se nos torne tão natural na vida real quanto o é na vida que ficcionamos. Quanto mais real e mais inteligente nos parecer a vida dos personagens que criamos, mais natural nos parecerá também a sua morte, se um dia decidirmos matá-los – que é coisa que sempre nos dá muito que pensar. Eu matei o personagem principal do meu primeiro romance sem um estremecimento que fosse: estava assim pensado desde o início da história e limitei-me a seguir o Storyboard.Mas, anos mais tarde, a pedido de um tradutor que precisava de entender melhor uma frase do livro, tive de reler a cena da morte dele e, com grande consternação minha, eu – o autor, o assassino – dei comigo a chorar a morte do meu personagem, como se lhe fosse inteiramente alheio.
Mais curioso ainda é que continuo – dez anos depois de ter morto o Luís Bernardo e cem anos depois da data oficial da sua morte – a ser interpelado por leitores que me cobram e lamentam essa morte. E isso faz-me pensar sobre o surpreendente destino das personagens dos livros: aparentemente, pertencem ao seu autor, que foi quem lhes deu vida; mas se o próprio autor acaba a chorar a sua morte e os leitores a indignarem-se e a chorarem também com ela, alguma coisa se passou entretanto que fez com que a criatura tenha escapado ao criador e ganho uma existência própria que, pelos vistos, retira ao autor a legitimidade de poder decidir sobre o seu destino final.
O que é fascinante nos livros não é o facto de eles serem, que não são, uma antologia – e corrente – da existência. É a capacidade de criarem a sua própria existência – inventarem uma história ainda por contar, num tempo em que tudo já parece contado e recontado; de inventarem novos seres vivos num mundo por natureza morto. E, depois, quando fechamos o livro e julgamos que tudo fica encerrado lá dentro, por vezes sucede o inverso: sai tudo lá de dentro, excepto justamente as palavras. A história e os personagens fogem das páginas e vão vaguear por aí, assaltando-nos em sonhos, numa praça longínqua de uma cidade estranha, numa manhã de chuva ou num corredor de hospital.
Quando era miúdo e me portava mal, às vezes fechavam-me à chave, de castigo, numa pequena divisão da casa que continha os livros da minha mãe. E, para me distrair, umas vezes lia os livros ao acaso e sem critério, outras vezes dedicava-me a um jogo mental: imaginar que os personagens dos livros saíam cá para fora, que se encontravam no meio da salinha e começavam a conversar sobre as suas vidas dentro dos livros onde habitavam. Mais tarde, já crescido, comecei a imaginar até que um dia iria escrever um livro sobre essa ideia: a Catherine Linton sairia de dentro de O Monte dos Vendavais e iria encontrar-se com o José Arcadio Buendía dos Cem anos de Solidão, acabado de chegar a Cartagena das Índias. A Ana Karenina fugiria ao Tolstói e refugiar-se-ia na cidade da Horta, nos Açores, em casa da Margarida Clark Dulmo. O capitão Ahab perseguiria a sua baleia até ao Mediterrâneo Oriental e acabaria a beber whisky na messe dos oficiais ingleses, no Cairo, com o capitão Thomas Edward Lawrence de Os Sete Pilares da Sabedoria. Como o soldadinho de chumbo que saía da caixa durante a noite para ir dançar com a sua bailarina de papel, assim também eu imaginava os personagens dos meus livros favoritos saírem dos seus invólucros de papel, das suas lombadas tantas vezes vistas, do seu lugar fixo na estante, para, juntos, construírem outras histórias. Personagens à procura de um autor.
Pois o que pretendo dizer é que não acredito que um livro, um romance, seja apenas a “antologia corrente da existência”. É muito mais do que isso: está para além do banal, do corrente, da existência. E, justamente, os livros servem para ajudar – a quem escreve e a quem lê – a fugir do banal, do corrente e da existência. Os grandes livros, os grandes romances – aqueles onde se inventa e nos socorremos de histórias e personagens que nunca existiram – são livros que desbravam, que mentem, que tornam possível o que não é real, que interrompem a vida como ela é. Numa palavra, que libertam.
Bem-aventurados livros, que para isso existem.
(Corrente D´Escritas,
Póvoa do Varzim)
Miguel Sousa Tavares, NÃO SE ENCONTRA O QUE SE PROCURA– “O ofício de escrever” – págs. 259/266, Edição, Clube do Autor, 2014


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