LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XV
143.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
São quatro da manhã, madrugada de uma sexta-feira, e eu sou, de certeza, o único lisboeta que a essa hora está às voltas na cama e a pensar em mexilhões. As insónias sempre me deram para a fome e para a criatividade gastronómica, de tal forma que o “caderno de ideias de insónias”, que guardo na mesa-de-cabeceira, está cheio de menus, de receitas e ideias culinárias. Nesta noite, não sei porquê, a insónia deu-me um desejo absurdo de mexilhões, coisa obviamente inconsumável às quatro da manhã.
Manhã de sábado, levanto-me de mal com o mundo e ciente de que só uma razia no mercado de peixe me poderia acalmar os humores de uma noite mal dormida. Cheguei à Ribeira era quase meio – dia, mas ainda muito a tempo de uma escolha farta. Poucas coisas me deixam tão eufórico como a visão de bancadas de peixe fresco: é uma deslumbrante “natureza morta”, que eu contemplo sempre com um sentimento de quem sabe que está a contemplar um milagre em vias de extinção. Se me perguntarem quais são as duas razões principais pelas quais eu não seria incapaz de viver fora de Portugal, respondia: a luz e o peixe.
Estas coisas, também, é preciso merecê-las. É preciso aguentar uma noite de insónia a pensar em mexilhões para os encontrarmos logo de manhã: foi o que me sucedeu, mal entrei na Ribeira. Satisfeita a prioridade número um, acalmada esta ânsia de bivalves, procedi tranquilamente à minha escolha de espécimes para um fim-de-semana só de peixe. Para a área dos grelhados, escolhi um peixe cujo nome já diz ao que vem – o imperador, uma das tais razões para um português não emigrar. Como não era muito grande, acrescentei-lhe umas douradinhas, pequenas, o que significa que, excepcionalmente, não eram de viveiro, porque essas têm todas a medida padrão dos vinte centímetros. Para o forno, comprei um magnífico e sensual pregado, ainda envolto naquela camada líquida viscosa que identifica o animal como recém – pescado. Enfim, para uma fritadita mista, ao gosto espanhol, arrebanhei umas fanecas e umas pescadinhas, a que juntei meio quilo de gambas cruas para um arroz de acompanhamento.
Meti tudo isto no carro e zarpei para o meu pátio encantado, onde o chefsou eu. Estava uma manhã de Janeiro linda, reunindo tudo o que sonhava para este dia – a luz e o peixe. Enquanto o carvão ia ficando “no ponto”, escalei o imperador (isto é, abri-o ao meio, longitudinalmente, para depois o espalmar sobre a brasa, para não ficar passado por fora e cru por dentro), salguei o peixe e preparei o refogado para metade dos mexilhões – com cebola, tomate, pimentos, azeite, muita salsa e vinho branco.
Metade dos mexilhões, entretanto, foi usada como abridor do apetite, acompanhando um vodka tónico no pátio, ao som de uma fonte de água corrente. Aprendi na Ericeira (onde se comem os melhores mexilhões do mundo) esta maneira, que é a mais simples e sumptuosa forma de cozinhar mexilhões: consiste simplesmente em metê-los sobre a brasa até que abram, não completamente. Depois, com cuidado para não queimar os dedos e não deixar escorrer a preciosa água que as conchas guardam, abre-se a tampa, espreme-se lá para dentro umas gotas de limão e come-se. Ah, Deus seja louvado, como é bom estar vivo! Aqueles mexilhões, pelos quais eu tinha suspirado madrugada fora, sabiam a água do mar grelhada, com uma mistura de algas, rochas, molusco e limão – absolutamente metafísico!
O almoço, que começou assim por uma espécie de sublimação sensual, foi depois amadurecendo em paladar, como uma mulher fatal que passa a barreira dos trinta mas continua a subjugar tudo à roda. Vieram primeiro os “mexilhões à espanhola”, acompanhados de um Portalegre branco – já com outros argumentos de substância. Depois, acompanhado apenas por uns grelos salteados em azeite e alho, veio o peixe grelhado, em brasa lenta, sem jamais levantar fogo.
Há dias, num hospital, um médico bem intencionado entregou-me um folheto com a alimentação recomendada para prevenir o colesterol. Sem surpresa, constatei, que tudo, rigorosamente tudo o que é bom, estava proibido, incluindo o peixe que não seja azul e cozido ou grelhado. O imperador estava chumbado e, pior do que tudo – horror dos horrores -, a pele vermelha e estaladiça do imperador, que faz dele um peixe inimitável e inesquecível. Hei-de pagar por isto e pela carne branca e lascada das douradas. E hei-de pagar pelo queijo de azeitão com a marmelada feita pela minha vizinha com que sepultei esta lauta safra marítima. E hei-de pagar, claro, pelo Romeo & Julieta Churchill, que acendi no fim – um “robusto”, com que fiquei uma hora a jiboiar, enquanto a luz da tarde ia enfraquecendo, cor de sangue com demasiados glóbulos brancos, e eu ia olhando, com um olho fechado e outro aberto, para as fotos da Gala dos 25 anos do Expresso, com uma infinita pena do Expresso e da gala.
E assim, tudo se foi apagando, devagarinho: a brasa do carvão, a luz do dia e o meu habano.Só a água continuou a correr na fonte.
Miguel Sousa Tavares, “Não se encontra o que se procura” – Eu amo Portugal – págs. 139/143, Edição, Clube do Autor, 2014
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