LEITURAS DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES II
139.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
CAVALOS QUE FAZEM SOMBRA NO MAR
Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?
António Lobo Antunes
E aqui anda a noite à roda, à roda e eu com ela como um papelinho com que o vento brinca, apanha-me, larga-me, empurra-me, corre, mais adiante, a prender-me nos dentes, esquece-se de mim, torna a lembrar-se, poisa-me uma pata em cima, vai-se embora. O vento. Em certas alturas, dantes, na casa velha dos meus pais, estremecia os caixilhos, na de Nelas batia um ramo contra a janela e eu deitado no escuro, com medo, enquanto o ramo falava sem cessar.
Dizendo o quê? Nunca entendi o vento.
Ontem, no fim do almoço das quintas-feiras no restaurante onde me junto a um grupo de amigos, o Vitorino e o Janita Salomé cantaram uma moda de Natal onde, a propósito dos Reis Magos, a letra pergunta que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Eles dois um grupo inteiro, a voz do Janita borda por cima da voz do irmão e nós a escutarmos, encantados. Estes dois versos não me largam: que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?
Gostava de usá-los como título de um livro: tocaram não sei onde, no mais fundo de mim, e eu comovido como tudo, com lágrimas dentro. Porquê? Vou repeti-los mais uma vez dado que não cessam de perseguir-me: que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? É quase Natal, uma época em que me lembro ainda mais do meu avô. Ruas iluminadas que tornam a noite triste, grinaldas de lâmpadas, uma festa que tremelica no escuro. Há horas recebi a notícia da morte do meu editor francês, Christian Bourgois. Era meu amigo, trabalhávamos juntos há vinte anos, depois da sua operação ao cancro fui por diversas ocasiões a Paris estar com ele. Uma manhã disse-lhe
– És um grande editor
ele respondeu
– Não há grandes editores sem grandes autores
e a modéstia das suas palavras alegrou-me.
Tinha um imenso faro para descobrir talentos, não se tornou nunca um comerciante, os livros constituíram sempre a sua razão de ser. Não há muitos editores que eu estime e respeite. Que horrível coisa perder um amigo: e as grinaldas de lâmpadas a tremelicarem no escuro, a tremelicarem no escuro, a tremelicarem no escuro.
A melancolia das lâmpadas, gente por todos os lados, enervada, com pressa. Desde que cresci o Natal tornou-se uma multidão de gente enervada e com pressa. Que não fazem sombra no mar. Não fazem sombra em parte alguma, zangam-se apenas: deve tratar-se do espírito da quadra. Não fui eu que perdi um amigo, foi o Christian que perdeu tudo. Canta, Janita: que cavalos são aqueles? Negócio sinistro, o da Literatura, as maldades, os meandros, o dinheiro.
A quantidade de alturas em que me vêm ganas de não publicar mais nada. Isto para não falar daquilo a que chamam autores. Mas noventa e nove por cento desses, tal como a multidão de gente enervada e com pressa, não fazem sombra no mar. Há tão poucos escritores capazes disso. Canta, Vitorino: cubram-me de Alentejo até não sentir frio, de oliveiras a perder de vista, de campos. Quero ser um papelinho que o vento apanha e larga, empurra, prende nos dentes, esquece, quero um ramo contra a janela a falar sem descanso. Dá-me uma mãozinha, Janita: que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?
Ainda o fim-de-semana passado, na foz do Douro, ondas enormes. Um quarto para as palmeiras, as ondas. Depois das ondas ficava a espuma sozinha, pendurada no ar. Em que me penduro eu, em que nos penduramos nós? Dá-me ideia que com o tempo vou ganhando uma solidez de pedra. Mesmo ao mover-me fico. Quando eles cantam as veias do pescoço engrossam, os olhos mudam, fitando para dentro. Beja à distância, alargando-se devagar. Sinto-me eterno em Beja. O hospital cheio de doentes onde fui por causa do ouvido. Será impressão minha ou as mulheres, nas terras pequenas têm mais beleza? No Algarve, por exemplo, na Póvoa de Varzim. No Montijo, onde trabalhei no regresso de África? Pântanos, água, barcos moribundos, só costelas. Pássaros que não conhecia. Uma tarde, na margem sul do Tejo, um cavalo branco atravessou de súbito a estrada, a galope, de crina longa que dançava. Tratar-se-ia de um dos bichos da moda? Devia tratar-se dado que continua a fazer sombra em mim.
E agora? Acende um cigarro, António, prepara o final: uma coisa que se veja, bonita, serena. O quê? Como? Rumores, rumores, escuto silêncios que conversam, vozes que não há, escuto cheiros e cores, sinto-os na língua. E escurece: hoje é o dia mais curto do ano, vinte e um de dezembro. Dezembro com minúscula, sempre escrevi os meses com minúscula. Nasci em setembro, as vindimas sou eu. Lá vinham os carros de bois com as pipas, lentíssimos e eu a pasmar para um pedaço de mica. Os reflexos da mica.
A serra azul. O rápido das seis. Vagabundos a atravessarem o pinhal, cheios de raiva. De bordão e barba. Os capotes rasgados e por baixo não as camisas, a pele. Pensando bem são eles os cavalos que fazem sombra no mar, os Reis Magos. Trazem oiro, o incenso e a mirra embrulhados em papel pardo. E eu nas palhinhas, nu, a sorrir-lhes.
António Lobo Antunes
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