Chá com Letras Online: E ELA DANÇA -LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XIV



LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XIV
142.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal

Nada é mais perigoso do que o silêncio
“Deve ser horrível ser-se deixado por ti!” Albert nunca mais esqueceu quando é que Marta tinha dito esta frase. Estavam deitados na cama nus, era fim de tarde e tinham acabado de fazer amor. Um silêncio instalara-se entre eles e velava sobre os seus corpos transpirados, mas era tudo menos um silêncio de estranhos. Pelo contrário: era tão familiar, tão íntimo, tão intenso, que chegava a doer de puro prazer. Era mais íntimo do que a própria nudez, mais devassante do que tudo o resto que faziam na cama.
E, então, Marta dissera aquela frase, sem mais nem menos, assim de repente. Ele ficou calado, ela voltou a calar-se, nada mais disse e ficou outra vez o silêncio. Ele lembrava-se de ter chegado a pensar “posso dizer o mesmo”, mas nada disse. Para quê? Sabia que Marta tinha razão, sabia que era por causa do que aquela frase encerrava que um dia Marta o deixaria – ela, antes dele.
Essa frase, essa terrível defesa, ele passeara-a depois, ao longo dos anos, ao longo das dezenas de outros corpos ou animais, ou o que se deva chamar a essa confusa fusão de um corpo que não obedece à cabeça, de sentimentos que afinal não passam de sensações e onde tudo é desesperadamente contraditório: porque não te amo, tenho este corpo para te oferecer; porque te amo, fujo e desapareço. E, porque desapareço, não te esqueço, porque essa é a minha forma de te ama – tudo o resto é ainda mais e mais sofrimento.
Com os anos, “eventually”, como dizem os ingleses, Albert tornou-se um brilhante cirurgião nos hospitais. Ele, que verdadeiramente fora avesso à intimidade de qualquer outro corpo que não o de Marta, ocupava-se agora em dar vida a corpos silenciosos e inertes, de que não conhecia os pensamentos nem os segredos. E havia qualquer coisa de indefeso, de indigno, na rendição daqueles corpos entregues às suas mãos. Cortava com minúcia de cirurgião, mas em cada corpo de mulher sofria a ausência de Marta, porque os gestos lembravam-lhe o deslizar dos dedos pela sua pele.
Albert nunca recuperou da ausência física de Marta. Mas guardou os silêncios e reconstruiu-os. Em cada silêncio da sua vida, falava com ela – como o fazia dantes, deitado ao seu lado, falando em silêncio, numa nudez absoluta, sem segredos nem medos. Porque nada é mais íntimo e mais indestrutível do que o silêncio partilhado. Tudo o resto são apenas palavras, sons, frases, coisas que qualquer um pode dizer. Podemos desdizer hoje o que dissemos ontem, podemos gritar hoje, por ódio, o que ontem segredámos por amor. Mas o silêncio fica porque nunca mente, porque é tão íntimo que não pode ser representado, é tão envolvente que não pode ser rasgado.
Conheço bem o Albert e a Marta, conheço bem a sua história, visto que sou o melhor amigo e confidente de ambos. Sei o quanto se amam no silêncio e à distância e não sei dizer como acabará a sua história. Ele destrói-se, ela defende-se. Cada um deles faz por desejar ou fingir desejar a salvação própria, mas, acima de tudo, teme a salvação do outro. O silêncio é o que lhes resta, o que os une, uma finíssima película de tempo suspenso, para além do qual não há nada mais do que a escuridão dos abismos. E, por isso, nenhum deles ousa qualquer palavra, qualquer gesto, qualquer coisa que possa romper esse ténue fio que os prende à eternidade.
É uma história triste e sem fim à vista. Conto-a porque me parece que ela encerra uma lição útil: nunca devemos amar em silêncio, nada é mais perigoso do que dividir com outrem os pensamentos vividos em silêncio. Um amor feliz precisa do turbilhão das palavras, das frases aparentemente inúteis e sem sentido, precisa de adjectivos, de elogios, do ruído das banalidades. Não há felicidade que não seja tantas vezes fútil, tantas vezes inútil.
Miguel Sousa Tavares – “Não te deixarei morrer, David Crockett” – NADA É MAIS PERIGOSO DO QUE O SILÊNCIO – Págs. 101/103 – 2016, Edições Clube do Autor. S.A





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