Chá com Letras Online: E ELA DANÇA -LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XIII



LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES XIII
141.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal

E ELA DANÇA
Às vezes, quando a casa estava adormecida à noite, ela dançava pela sala fora, tal como escreveu (“bailarina fui mas nunca bailei”). Às vezes, convencia-se que havia ladrões em casa e acordava-me do sono para espreitar debaixo da minha cama, e às vezes havia ladrões a sério, com caras de assassinos e crachá da PIDE, que chegavam pela alvorada do dia, mas verdadeiramente ela não tinha medo dos ladrões nem dos esbirros do “velho abutre”: só tinha medo de fantasmas.
Naquela casa, aprendemos cedo duas coisas sobre a poesia. A primeira era que os poetas eram todos uns personagens extraordinários, que pareciam a horas imprevistas e diziam coisas surpreendentes. De todos, o mais fantástico era o Ruy Cinatti, que nos convenceu que era o nosso irmão mais velho, regressado de outra vida em Timor e que esteve à beira de conseguir transformar-nos em guerrilheiros contra a precária disciplina familiar. Vinham e iam constantemente poetas tristes ou alegres, cerimoniosos ou tumultuosos e até um, o Ruy Belo, que me levava à Luz ver o Benfica e jogava futebol comigo no jardim.
A segunda coisa sobre a poesia que aprendemos é que a poesia é para ser dita e escutada: é oral, não cabe nos livros. Eu não sabia nada de aritmética, nem de botânica ou de mineralogia, mas aos dez anos, já tinha aprendido, de ouvido, a recitar poemas de Shakespeare em inglês do século XVI, ou o “Erlkönig”, do Goethe, em alemão. E quando ela trouxe para casa um disco com poemas de Lorca recitados em espanhol pela Germaine Montero, ouvi-o tantas, tantas vezes, que fiquei a saber de cor o imenso” Llanto por Ignacio Sánchez Mejías”. À mesa, entre a sopa e o prato principal, dentro de um automóvel a caminho do Sul ou na missa das 7 da tarde na Igreja da Graça, de repente ela começava a recitar poesia com a mesma naturalidade com que os outros falavam de coisas triviais ou respondiam em latim ao “orate, frates!” do padre. Às vezes, naquele terror que as crianças têm que os pais pareçam estranhos em público, apetecia enfiarmo-nos pelo chão abaixo quando, à mesa de um café no Chiado, ou numa loja, em plenas compras de Natal, ou caminhando connosco pela rua de mãos dadas (por vezes, distraída, perdia-nos), ela começava a recitar poesia em voz alta, como se o mundo inteiro à sua volta lhe fosse de repente absolutamente alheio. Um dia, no eléctrico a caminho de casa, ela fixou-se num letreiro, por cima de uma janela, que rezava assim: “Se alguma janela aberta o incomoda, peça ao condutor que a feche”. E então, no meio daquele silêncio envergonhado dos passageiros, que fingem não ver e não se ouvirem uns aos outros, ecoou a voz dela, clara e silabada, recitando um poema: “Se alguma janela aberta o incomoda, peça ao condutor que a feche e que nunca mais a abra.”
A mim, todavia, ensinou-me o mais importante de tudo: ensinou-me a olhar. Ensinou-me a olhar para as coisas e para as pessoas, ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite, para as manhãs. Ensinou-me a abrir os olhos no mar, debaixo de água, para perceber a consciência das rochas, das algas, da areia, de cada gota de água. Ensinou-me a olhar longamente, eternamente cada pedra da Piazza Navona, em Roma, sentados num café, escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me mergulhador e viajante, ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é verdadeiro. Quem ler com atenção, verá que esta é a moral que atravessa toda a sua escrita.
A outra lição decisiva foi a da liberdade. Não só a liberdade física, não só a liberdade na luta pela justiça “num sítio tão imperfeito como o mundo”, mas ainda a liberdade na busca de um caminho próprio onde as coisas tenham uma ética e façam sentido e, acima de tudo, a liberdade da nossa própria solidão. Prémios, condecorações, homenagens, são-lhe de tal forma alheios que ninguém mais o entende. Dêem-lhe, sim, silêncio e tempo, manhãs como a “manhã da praça de lagos” e noites com “jardins invadidos de luar. E ela dançará. Ao longo das sílabas dos poemas, como dançava na minha infância.
Miguel Sousa Tavares – “Não te deixarei morrer, David Crockett” E ELA DANÇA, PÁGS, 109/112 – 2016, Edições Clube do Autor. S.A




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