Chá com Letras Online: BRASÍLIA, LUZ QUE BRILHA - LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES IX



LEITURAS DE MIGUEL SOUSA TAVARES IX
131.º ENCONTRO
Seleção de Maria José Areal


BRASÍLIA, LUZ QUE BRILHA
Há alguns lugares do mundo, tocados pelo homem, aonde eu cheguei e fiquei devastado pela sua beleza: o Alhambra, em Granada, a Praça de S. Marcos, em Veneza, 5. ª Avenida, em Manhattan, à noite, o templo grego de Taormina, na Sicília. Mas só há duas construções humanas onde eu chorei ao entrar: a catedral de Brasília e o Museu Niemeyer, também em Brasília. A primeira, vi-a em 1987, a primeira vez que fui a Brasília; o Museu, vi-o em 2008, dois anos depois de Oscar Niemeyer o ter concluído, aos cem anos de idade.
Sei que é uma empreitada impossível, mas, eu queria tentar partilhar o que sente um homem quando desembarca na Praça dos Três Poderes, na avenida onde estão o que eles chamam os “monumentos”, desenhados por Niemeyer. É incrível pensar que tudo aquilo nasceu do nada, há cinquenta anos, que os imensos parques a perder de vista no caminho para o Lago Sul foram conquistados contra o “cerrado” e contra o vento, a aridez, a secura, as cobras e os bichos outros que aqui habitavam. É incrível pensar que Brasília nasceu do sonho de alguns visionários e do esforço e fé dos emigrantes do “pau-de-arara”, que aqui construíram e povoaram uma nova cidade, num novo mundo onde todos os sonhos podiam ser sonhados. Um instante único na história das cidades, na história dos homens. Brasília nasceu assim – absurda, utópica, visionária e demencial. Sobreviveu, cresceu, estabeleceu raízes, pariu duas gerações de nativos, transbordou até em favelas e cidades-satélites e, de alguma maneira que só os brasilienses sabem, encontrou o seu “jeito” de ser, as suas modas e manias, a sua vida própria delimitada pelas “quadras”. Capital do modernismo, sozinha no meio do sertão ou apenas, como dira Drummond, um avião que risca o céu na noite: mas como brilha e como dói!
Niemeyer, ao contrário de muitos outros arquitectos, não gosta de linhas rectas. Gosta, como ele disse, da linha curva, que lhe faz lembrar as serras e as enseadas, as curvas das mulheres do seu Brasil. Essa é uma sua imagem de marca: não há linhas rectas, tudo é curvo e suave, até a rampa do Museu de Niemeyer, que subimos sem reparar que estamos a subir até uma altura de dois andares. Os espaços tornam-se leves, os volumes não pesam, os ângulos são difusos, tudo parece flutuar eternamente. Depois, ele consegue uma magia inexplicável, que é transformar tudo o que parece pequeno por fora num espaço imenso por dentro. Quando chorei ao entrar pela primeira vez na catedral de Brasília, foi porque senti que ali, como nunca antes, estava, de facto, próximo dos deuses: todas as catedrais me esmagam, todas me dizem que Deus, se existe, é infinitamente esmagador em face dos homens. Mas ali, não: ali, o céu não nos esmaga, antes nos convoca, e é como se flutuássemos em direcção a ele. A mesma coisa no Museu: as linhas curvas envolvem-nos e não nos pesam, a luz – que entra com uma sabedoria incrível e que é o sinal dos grandes arquitectos e marca constante na obra de Niemeyer – transporta-nos para um mundo de sonho, onde flutuamos como se estivéssemos, de facto, no meio de uma nuvem, algures a caminho do céu. Então, eu entro e choro – porque não tenho outra maneira de sentir, de agradecer ter estado ali, de ter visto com os meus olhos, ter percebido que há coisas que não se conseguem contar nem descrever. Também conheci o Planalto e o Alvorada, o Congresso e a Presidência. Em todo o lado vi a mesma luz que tudo atravessa, a mesma leveza, a mesma crença no sonho, na humanidade, num mundo mais justo, porque mais belo.
Depois, quando lá vou, ando pelos restaurantes que já conheço, pelas casas dos amigos que sempre me recebem bem como se eu tivesse saído dali ontem ainda, cai uma chuva que tudo lava quando nos sentamos nas varandas e nos terraços, ouvimos Elis e o Tom Jobim, o vento levanta folhas da mangueira do jardim e um avião atravessa a noite de Brasília e todos olham tentando adivinhar o seu destino pela trajectória (Rio, São Paulo, Belo Horizonte?), porque aqui todos vivem a partir e a chegar, a sonhar partir, mas a voltar sempre, como se, cinquenta anos passados, Brasília fosse, afinal, uma terra.
E, assim, volta e meia, eu volto. Saio do aeroporto e peço ao motorista do carro que desça devagar a avenida até à praça dos Três Poderes, vejo as colunas que suportam os edifícios plantados na água, os cones de betão que parecem velas desenhando sombras nas paredes ao pô-do-sol, as construções que levitam sobre a terra ocre, a estátua de Juscelino olhando a sua cidade, e outra vez me espanto com este delírio do absoluto no meio do nada. Ah, o que será que Brasília tem?
Miguel Sousa Tavares, NÃO SE ENCONTRA O QUE SE PROCURA – “Brasília, luz que brilha”, págs. 45/48, 2001, 1ª edição, 2014 - Clube do Autor, Editora

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