Chá com Letras Online:Levantados do Chão II- LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO XX



LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO XX
109º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


Levantados do Chão II
…. Todos os anos, em datas certas, a Pátria chama os seus filhos. É um modo exagerado de dizer, habilidosa cópia de algumas proclamações usadas em hora de aperto nacional, ou de quem em seu nome fala, quando importa, para fins confessos ou inconfessos, que sejamos mostrados como uma imensa família toda feita de irmãos, sem distinção de Abel e Caim. A pátria chama os filhos, ouve-se a voz da pátria a chamar, a chamar, e tu que até hoje nada mereceste, nem o pão para a fome que tens, nem o remédio para a doença que te tem, nem o saber para a ignorância, tu, filho desta mãe que tem estado à espera desde que nasceste, tu vês o teu nome num papel à porta da junta de freguesia, não sabes ler, mas alguém letrado aponta com o indicador a linha onde se enrola e desenrola uma minhoca preta, és tu, ficas a saber que essa minhoca és tu e o teu nome, escrito pelo amanuense do distrito do recrutamento, e um oficial que não te conhece e de ti só quer saber para isto, põe o seu dele nome por baixo, é uma minhoca ainda mais enrodada e confusa, não chegas sequer a saber como o oficial se chama, e a partir de agora não podes fugir, a pátria olha-te fixamente, hipnotiza-te, era o que faltava se ias ofender a memória dos nossos avós e os descobrimentos. Chamas-te António Mau-Tempo, desde que vieste ao mundo te espero, meu filho, para que saibas que mãe estremosa sou, e se durante todos estes anos te não dei muito atenção, haverás de perdoar porque vocês são muitos e eu não posso olhar por todos, andei a preparar os meus oficiais, com havias tu de aprender os movimentos da marcha, um dois esquerdo direito, direita volver, alto, ou os manejos de arma, cuidado quando enfias a culatra, ó saloio, vê lá se queres deixar ir o dedo atrás, e dizem-me que não sabes ler, fico espantada, então não pus eu escolas primárias nos sítios estratégicos, liceus não, não precisarias, a tua vida é diferente, e vens dizer-me que não saber ler, nem escrever, nem contar, trabalhos me dás, António Mau-Tempo, vais ter de aprender no quartel, não quero filhos analfabetos debaixo das minhas bandeiras, e se depois esqueceres o que te mandei ensinar, paciência, não será minha a culpa, tu é que és burro, labrego e saloio, em verdade te digo, estão os meus exércitos cheios de labregos, o que vale é ser por pouco tempo, acabado o serviço militar voltarás à tua ocupação, porém se quiseres outra tão custosa como essa, também se arranja.
Dissessem as pátrias a verdade e ouviríamos este discurso, mais ponto, menos cifra, mas então haveríamos de sofrer o desgosto de deixar de acreditar nas maviosas histórias da carochinha, as de ontem e de hoje, ora de armadura e guante, ora de dragona e greva, por exemplo aquela do soldadinho que vivia na trincheira saudoso da sua mãe carnal, que a celeste já morreu, olhando enfim o retrato daquela que lhe deu o ser, até que certo dia uma bala perdida, ou pelo contrário muito bem disparada por atirador especial do inimigo, fez o retrato em estilhas, levou a efígie da doce anciã e senhora mãe para os quintos, e então o soldadinho, louco de dor, salta o parapeito e corre de arma na mão em riste contra as trincheiras adversárias, mas não foi longe, caiu-lhe em cima uma rajada que o ceifou, é assim que se diz nestas narrativas da guerra, a qual rajada lhe foi atirada por um soldado alemão que também tem no bolso o retrato de sua mãe e suave anciã, isto se acrescenta para ficarem mais completas as histórias das mães e das pátrias e de quem morre ou mata por histórias destas.
António Mau-Tempo deixou o trabalho onde o tinha, desceu a Monte Lavre, saiu do comboio em Vendas Novas, olhou de fora o quartel onde teria de estar dali a três dias e meteu pernas ao caminho, três léguas são, e como o tempo estava formoso foi de seu passo seguro mas sem pressa, deixando à mão esquerda o polígono de tiro, há terras que nascem com mau fado, castigada é esta de estéreis revolvimentos, é como alguns homens, e por fim perde-a de vista, ou, com mais exatidão, de saber que está lá, mesmo não a vendo, e fica agitado só de pensar que por ano e meio estará perdida a sua liberdade. …
JOSE SARAMAGO – “Levantados do chão”, (excerto, págs., 209/211, 22.º edição, 2021- Porto Editora

Imagem in: http://despertadoteusono.blogspot.com/.../portugal-na-1...







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