Chá com Letras Online: “Levantados do chão” - LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO XIV



LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO XIV
103.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal

Excerto da obra, “Levantados do chão” de José Saramago

Sara da Conceição não anda bem de saúde. Deu agora em sonhar com o marido, quase não se passa uma noite sem que veja deitado no chão do olival, com o vinco da corda marcado no pescoço, arroxeado, não pode o corpo ir assim para a cova, e então põe-se a lavá-lo com vinho, porque se conseguir que o vinco desapareça, terá o marido outra vez vivo, coisa que nem por sombras quereria quando acordada, mas no sonho é isto, quem poderá decifrar. Esta mulher, que tanto peregrinou em nova, vive agora quieta e calada, mas isso em verdade sempre foi, ajuda em casa de seu filho João Mau – Tempo e de sua nora Faustina, cuida das netas Gracinda e Amélia, trata da capoeira, passaja a roupa e torna a passajá-la, deita fundilhos, que é ciência transposta do seu breve tempo de ajuntadeira, e tem uma mania que ninguém entende, vem a ser andar por fora de casa, noite fechada e todos os seus dormindo. É certo que não vai longe. Nem o medo lho consentiria, e para o efeito basta-lhe uma viagem até ao fim da rua. No dizer da vizinhança, a velha está meio amalucada, talvez esteja, porque se todas as mães velhas viessem para a rua à noite para que os filhos e as noras ou as filhas e os genros tivessem em sossego suas brincadeiras, seria coisa digna de registo na pobre história dos pequenos gestos humanos, verem-se as velhas andarilhando nas sombras ou ao luar, ou sentadas no chão, pelos muros baixos, ou nos degraus do adro à espera, caladas, que diriam elas, deitando contas à memória dos seus prazeres passados, como foi, como não foi, e o tempo que duravam, até uma delas dizer, já podemos voltar, e todas erguendo-se, Até amanhã, chegando-se às casas, levantando de mansinho a tranqueta, e o casal se calhar dormindo e inocente do exercício de conjugal, que não pode ser todas as noites, senhora mãe. Mas Sara da Conceição preferia errar por excesso, só lhe custava estando mau tempo, caso em que se metia debaixo de um alpendre no quintal, e por misericórdia de Faustina, que bem a entendia, o que são mulheres, chamavam-na da porta, sinal de uma noite tão de pureza como aquelas estrelas frias, se é que justamente nas estrelas não procura João Mau – Tempo sua legítima mulher debaixo dos lençóis.
Talvez Sara da Conceição, com todo este entrar e sair, apenas esteja fugindo aos sonhos que a esperam, mas é certo e sabido que pela madrugada há de ir dar ao olival, é o dia seguinte ao da morte, que foi quando deram com o corpo, sabe-o ela sonhando, e com uma garrafa de vinho e um trapo repete o movimento, esfrega, torna a esfregar, e a cabeça bamboleia, e quando vem para cá fitam-na os olhos frios do marido, e quando vai para lá fica o cadáver sem rosto, pior ainda. Acorda em frio suor Sara da Conceição, ouve o ressonar do filho, o mau dormir do neto, não sente as netas nem a nora, são mulheres, por isso caladas, e chega-se para junto das duas meninas, com quem dorme, sabe-se lá para o que estão guardadas, melhor sorte tenham do que esta de sonhar assim.
Foi o caso por diante, e uma noite saiu Sara da Conceição e não voltou. Foram dar com ela, manhã clara, fora da vila, sem tino de casa, a falar do marido como se ele estivesse vivo. Uma desgraça. Valeu a filha que em Lisboa estava a servir. Maria da Conceição, uma sua criada, que com muitas lágrimas pediu aos patrões que lhe valessem, e eles valeram, ainda há quem diga mal dos ricos. Veio Sara da Conceição de Monte Lavre para, pela primeira vez, viajar de táxi entre o barco do Terreiro do Paço, sul e sueste, e o manicómio de Rilhafoles, onde ficou até vir a morrer como um pavio e a que se acabou o azeite. Às vezes, mas são muitas, temos a nossa vida, Maria da Conceição ia visitar a mãe, ficavam as duas a olhar uma para a outra, que mais podiam fazer. Quando, uns anos mais tarde, trouxeram João Mau – Tempo para Lisboa por motivos que logo saberemos, já Sara da Conceição se finara, rodeada pelo riso das enfermeiras, a quem a pobre tonta, humildemente, pedia uma garrafa de vinho, imagine-se, para um trabalho que tinha de acabar antes que se fizesse tarde. Que dor de coração, senhoras e cavalheiros.
José Saramago, “Levantados do chão”, Págs. 117/119 – 22.ª edição, Porto Editora




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