Chá com Letras Online: Desforra – excerto do conto - 1.ª parte - LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO XVI



LEITURAS DE JOSÉ SARAMAGO XVI
105.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


Desforra – excerto do conto - 1.ª parte

O rapaz vinha do rio. Descalço, com as calças arregaçadas acima do joelho, as pernas sujas de lama. Vestia uma camisa vermelha, aberta no peito, onde os primeiros pêlos da puberdade começavam a enegrecer. Tinha o cabelo escuro, molhado de suor que lhe escorria pelo pescoço delgado. Dobrava-se um pouco para a frente, sob o peso dos longos remos, donde pendiam fios verdes de limos ainda gotejantes. O barco ficou baloiçando na água turva, ali perto, como se espreitassem, afloraram de repente os olhos globulosos de uma rã. O rapaz olhou-a, e ela olhou-o a ele, depois a rã fez um movimento brusco e desapareceu. Um minuto mais e a superfície do rio ficou lisa e calma, e brilhante como os olhos do rapaz. A respiração do lodo desprendia lentas e moles gotas de gás que a corrente arrastava. No calor espesso da tarde, os choupos altos vibraram silenciosamente, e, de rajada, flor rápida que do ar nascesse, uma ave azul passou rasando a água. O rapaz levantou a cabeça. No outro lado do rio, uma rapariga olhava-o, imóvel. O rapaz ergueu a mão livre e todo o seu corpo desenhou o gesto de uma palavra que não se ouviu. O rio fluía, lento.
O rapaz subiu a ladeira, sem olhar para trás. A erva acabava logo ali. Para cima, para além, o sol calcinava os torrões dos alqueires e os olivais cinzentos. Metálica, duríssima, uma cigarra roía o silêncio. À distância, a atmosfera tremia.
A casa era térrea, acachapada, brunida de cal, com uma barra de ocre violento. Um pano de parede cega, sem janelas, uma porta onde se abria um postigo. No interior, o chão de barro refrescava os pés. O rapaz encostou os remos, limpou o suor ao antebraço. Ficou quieto, escutando as pancadas do coração, o vagaroso surdir do suor que se renovava na pele. Esteve assim uns minutos, sem consciência dos rumores que vinham da parte detrás da casa e que se transformaram, de súbito, em guinchos lancinantes e gratuitos: o protesto de um porco preso. Quando, por fim, começou a mover-se, o grito do animal, desta vez ferido e insultado, bateu-lhe nos ouvidos. E logo outros gritos, agudos, raivosos, uma súplica desesperada, um apelo que não espera socorro.
José Saramago. “Objeto quase” – excerto do conto, DESFORRA, págs. 131/134, 2015 1.º edição da Porto Editora


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