LEITURAS DE ÁLVARO LABORINHO LÚCIO VII
100.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
13.º azulejo II parte
Ainda há palavras
A vida dele. A dela. A do filho. “muito bem”, na América. Era mesmo só o silêncio que cabia ali. Jacqueline era uma mulher bonita. Cansada. Mas bonita. Havia nela uma tristeza natural. Que parecia pertencer-lhe, como se fosse coisa sua, coisa de usar, e que lhe assentava bem. Norberto não conseguia decidir se era a tristeza que a fazia bonita, se era ela que embelezava a tristeza. E ficava a contemplá-la, enquanto ela, com a cabeça encostada ao vidro, olhava as escarpas ainda brancas, o penedio, os monstros sagrados da montanha. Agora havia também a ansiedade para misturar na tristeza. Era mais nas mãos que essa pousava, com os dedos a fazerem e a desfazerem redes, a abraçarem-se e a desprenderem-se. Sem jamais se fixarem. Num jogo sem fim. Apesar disso, parecia serena, ou talvez mais segura do que serena. A vida tem dessas coisas. Troca-nos as sensações, à medida que avança.
Sentados, lado a lado, sabiam ambos para onde iam. E como tinham sido diferentes os seus passos até ali. Os dela, cada vez menos largos, perdendo firmeza enquanto a esperança se desfazia, deixando-lhes, para passar, uma estreita vereda onde mal cabia, para se perder por fim numa visão de infinito sem horizonte. Desse outro infinito onde morrem os sonhos. Os de Norberto, sempre iguais. Sabia para onde caminhava. Soube sempre. E alimentava a crença de lá chegar. Fora quanto bastara para não desistir. Aquela era uma vitória sua.
Mas, e depois?
Que grande porra, pensei, ao lembrar-me de um tipo que vi na televisão. Não vinha nada a propósito, e, todavia, ficou-me aquilo ali a moer. Fora condenado a prisão perpétua, já não sei porque crime. Era novo. Tinha a vida ao pé, pronta para ele. E, zás. Perpétua. Já ia perto dos oitenta. Chegou-lhe a notícia. Fora um erro. Era um homem livre. Vieram votos, vieram parabéns, deram-lhe abraços à saída da prisão. Os abraços voltaram todos para dentro mal se fechou a porta. Não me esqueço da cara. Tinha o ar de estar num lugar qualquer por engano. Tinha o ar se ser por engano. Havia palavras que tinham ficado proibidas. Pensando bem, era a maior parte delas. E esse era o meu maior medo. Foram tantos anos!
Jacqueline olhou para mim e sorriu. Era mesmo serenidade. Acho que, para ela, ainda havia palavras.
Esperámos que o táxi desse a volta e partisse. Eu pedira para nos deixar no extremo do largo, do lado oposto ao da entrada. Era importante aquela travessia. Jacqueline iria fazê-la só. Eram os seus, os passos, que a levariam. À porta, estava D. Leontina da Conceição. Ao fundo da escadaria, à esquerda, com a frente voltada para as paredes do edifício, continuava o Peugeot 404. Leontina desceu até ao fundo. A porta traseira do carro estava aberta. Junto dela, cá fora, em cadeira de rodas, um homem esperava por Jacqueline. Era o engenheiro. No assento de trás do seu 404, repousava, também à espera, um ursinho de peluche. Tinham, os dois, um filho na América.
Dei um beijo a Jacqueline. Ela abraçou-me. Longamente. Com um toque nas costas fi-la avançar. Não se voltou. Em toda a vida, nunca hesitara. Faltava apenas meio largo. Atirei um aceno de despedida para Leontina, que retribuiu. Estava também feliz. Olhei de soslaio, para a janela mais à esquerda, no primeiro andar do edifício. Estava fechada.
Virei costas e desci até à cabana. Vi as horas. Não tinha muito tempo. Foi só uma ligeira arrumação, limpar e proteger do pó o copiógrafo. Fazer o saco. Pegar nele. Fechar a porta. E sair. O táxi estacionara um pouco abaixo.
Outra vez o comboio. Até Paris. Gare d´Austerlitz.
Marcel ia lá estar. À minha espera.
Fim
ÁLVARO LABURINHO LÚCIO, “O Homem Que Escrevia nos Azulejos”, 13º azulejo, II parte págs. 236/238 – 2019, Quetzal editora
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
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