Chá com Letras Online: Um dicionário de olhares - LEITURAS DE ÁLVARO LABORINHO LÚCIO VIII



LEITURAS DE ÁLVARO LABORINHO LÚCIO VIII
101.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


Excerto da obra, “O Homem Que Escrevia Azulejos” de Laborinho Lúcio

29.º azulejo

Um dicionário de olhares

ESTAVA NA HORA DA ÚTIMA CERVEJA. De trás do balcão, já de garrafa e copo nas mãos, pronto para atravessar a sala, vejo o sinal de Norberto a pedir-me que espere. Sobre a mesa, há ainda meia cerveja por beber e Norberto, com onze quase bebidas, parece tão vivo e lúcido como se estivesse sóbrio. Otília fala sem parar e não dá porque Norberto trava, com a mão esquerda descaída sobre a ilharga, a minha caminhada até elas. Nunca acontecera. Norberto não tira os olhos de Otília. Bebia devagar. Espaçadamente. No rosto nasciam-lhe expressões que expulsavam a sua velha face, sem cor, rendida à bebida. Zulmira passou a correr à frente. Estranha sensação! Deve ter sido por me ter baixado bruscamente no movimento de levar a garrafa de regresso à geladeira. Olhei-o de longe. Não deu por nada. Muito do que disséramos um ao outro, muito do que sentíramos juntos, tinha acontecido ali. Sem palavras. Havíamos construído um dicionário de olhares e era com eles que ocupávamos o espaço que ia do balcão à mesa do canto. Os nossos encontros, no rés-do-chão do n.º 29, ou nos fundos do bar às segundas-feiras, eram apenas tempos de síntese, de resumos das nossas conversas em silêncio. Conversas só nossas, construídas a partir de temas de uma vida. Crescemos caminhando um para o outro. Até ficarmos nós. Ele chegara, trazendo desfraldada a bandeira da igualdade. Era quase uma criança. Em Austerlitz, mal pude acreditar que o jovem que procurava era aquele rapaz com ar de abandono a mendigar um simples sinal de acolhimento. Todo ele era prosa. Aprendera que as palavras eram armas. Ensinaram-lhe que com armas não se brinca. Tínhamos tudo para nos darmos mal. O meu estandarte era a liberdade. Todo ele era poesia. Libertar a palavra era o meu lema. O que nós aprendemos na travessia do tempo! Recordo-me, numa tarde, já cá, Norberto estava particularmente loquaz. Voltava à sua diabrite contra o passado, o seu passado, e desprezava o presente. Era assim sempre que se punha a pensar no futuro. Foi então que se voltou para mim, me tomou, com as suas, ambas mãos, e me disse, nós somos a fraternidade. E repetiu, abanando-me até ao abraço definitivo, a fraternidade somos nós. A fraternidade! Foi ela que me conduziu até à prosa e à igualdade. Terá sido ela a levar Norberto até à poesia e à liberdade? Cá para mim, julgo que o Cortázar e a Jacqueline tiveram aí papel importante. Onde param agora a liberdade, a igualdade e a fraternidade? E onde anda o Norberto? Aquele sinal, na sua singeleza não terá sido o prenúncio de uma despedida? Ainda que inconsciente? Terá, Otília, reabilitado Norberto, abrindo-lhe outros horizontes? Mesmo que seja só a ilusão de um caminho novo? Não tiro os olhos dele. E quanto mais olho, mais me sinto só. Olhá-lo é querer falar-lhe, pedir-lhe que não parta como partiu um dia, abraçando Zulmira. Mas ele não reage.
Não me ouve, sequer. A cerveja continua a meio e os seus olhos não se voltam para onde eu estou. Deixo-me arrastar pela memória que, desprendida, de nós, me chama até mim. Até onde não quero ir. Tenho da minha mãe uma imagem narrada, a visão de um buraco negro onde não cabe um mimo, uma carícia, um beijo de adormecer. Tenho uma ideia distorcida, disforme de mãe. É Jacqueline quem responde sempre que procuro encontrar a minha mãe. É uma mãe-criança a dar-me colo, que é também o da boneca. Com que brinca. E eu a crescer como se fosse pecado. O meu pai a passear-me pela mão e a mão sem apertar. E todos calados. Jacqueline com um filho sem pai. E eu? A achar que o meu desconfiou sempre que sou filho do Robalo.
E Norberto que não olha. Quero muito lembrar-lhe as nossas conversas. Não deixar que as esqueça. Recordar uma noite, já depois de engolida a revolução em que, para nos animarmos, concluíamos que “a realidade não é nada.” Líamos François Jacob e dizíamos, com ele, voltando à realidade, que “o artista a refaz por conta própria. Que o mundo não chega à gente já feito, já pronto, já instalado, e que cabe a cada um de nós reconstruí-lo”. Era, apesar de tudo, o futuro nas nossas mãos. Continuo a olhá-lo. Mesmo sem ele, encho o espaço que nos separa. E chamo-o, com os olhos, tentando trazê-lo de volta. Lembro-lhe a chegada do professor, animo-o com a vinda da Chinesa. É a Filosofia, Norberto, é a Literatura, são as Humanidades. Penso com força. Não sei por quanto tempo serei capaz. É a dúvida que me solta as lágrimas. Tão iguais às velhas lágrimas de Norberto. E ele, sem as ver, engole de um trago a cerveja que faltava, como se bebesse as lágrimas que lhe chorei. Vira-se para mim. Abre um sorriso, discreto como sempre. E faz-me um sinal para que lhe leve a última garrafa da manhã.
ÁLVARO LABURINHO LÚCIO, “O Homem Que Escrevia nos Azulejos”, 29º azulejo, Um dicionário de olhares - págs. 161 /163100 – 2019, Quetzal editora


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