Chá com Letras Online:Excerto da obra, “O Beco da Liberdade” - LEITURAS DE ÁLVARO LABORINHO LÚCIO III
LEITURAS DE ÁLVARO LABORINHO LÚCIO III
96.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
… JOSE AUGUSTO MARREIRO LESSA, permaneceu de pé. Aquela sala, velha de tantos anos, guardava boa parte da sua vida. Sempre gostara da cor verde das paredes sobre as quais desfilava a já longa história da família. O retrato pintado da mãe dava-lhe uma força que a fotografia ampliada do pai não lograva transmitir. Questão de profundidade, pensou. E sorriu para si. Que profundidade? De campo, ou de alma? Pegou no retrato de família, em moldura de cartão prensado sobre a lareira. Lá estava ele. Calções até ao joelho, camisa aos folhos, pernas cruzadas, caracóis. Não se recordava de ter tido caracóis. A seu lado, o Manoel. Calças compridas e camisola de malha, obra da avó. Era um rapagão. Parecia um homem. Junto à lareira, no canto em que esta, toda em pedra, formava com a parede, erguia-se um jarrão japonês. Autêntico, garantira o pai. Uma relíquia, secundava-o a mãe. Guilherme Augusto inclinou-se, pegou nele, já a custo, ergueu-o um pouco e fê-lo rodar até deixar à vista uma fenda ao alto que, escondida contra o ângulo da parede, fazia perdurar a ilusão de uma peça intacta. Autêntica, uma relíquia. Uma estranha sensação de vómito trouxe-lhe indesejadas recordações, e tudo voltou a acontecer.
Era Verão, havia sol, as sacadas grandes da sala estavam abertas de par em par. Os pais, lá fora, no jardim, o pai a ler e a mãe a bordar. O jarrão estava sobre uma peanha que pouco acrescentava ao diâmetro da base. Afastado da parede, sobressaía o empedrado da lareira. Era a peça nobre do salão. Os rapazes jogavam à apanhada, era a vez do guilherme perseguir o Manoel. Este, mais hábil, fugia à sua frente, olhando para trás. Retardava o passo, deixava que o irmão se aproximasse, e mal este prestes a tocar-lhe retomava a fuga, atirando-lhe um chorrilho de gargalhadas. Guilherme Augusto desesperava. O irmão voltou a abrandar. Estavam agora à entrada do salão. Manoel parou aí e ficou a medir a aproximação do Guilherme. Estava quase. Manoel não tirava os olhos do irmão. E ria. Estava quase a ser apanhado quando voltou a arrancar. De um salto, entrou na sala e, ainda de olhos distraídos, chocou violentamente com o jarrão e derrubou-o. Os pais voltaram-se num só movimento. E correram para dentro de casa. Manoel desaparecera. De pé, num choro desordenado, com arrancos de vómito, estava Guilherme Augusto. Nunca o Manoel se acusou, nunca Guilherme acusou o irmão. A mãe ralhou-lhe, o pai sovou-o. O quarto fez de sela uma semana. E o jarrão, autêntico, uma relíquia, com uma fenda ao alto, foi encostado à parede, junto da lareira, e ali estava agora diante dos olhos de Guilherme Augusto Marreira Lessa.
- Sabias disto, Narcisa? – inquiriu o juiz quando ela regressava na sala, segurando a mão o napperon de renda que havia de colocar a cobrir o tampo da mesinha redonda sobre o qual Natasha Lyubochka, a nova empregada, pousaria o tabuleiro com a chávena, o bule e o açucareiro.
- Disto o quê?
- Do acidente do jarrão.
Já Natasha se retirava quando Narcisa respondeu:
- Sabia, sim. Assisti a tudo, lá de cima. Estava à janela do meu quarto.
- Como, Narcisa? E nunca me disseste nada?
- Há tanta coisa que eu nunca disse.
Guilherme Augusto voltou a olhar as árvores. Virou-se depois para a velha mulher, companheira de infância, e convidou-a a mandar trazer outra chávena e a juntar-se a ele. Arrastou uma cadeira para junto da sua. E disse-lhe:
- Senta-te, Narcisa, ao pé de mim. Hoje vais tomar o chá comigo.
Dois anos mais velha do que Guilherme Augusto, Narcisa era filha dos caseiros, …
ÁLVARO LABURINHO LÚCIO, “O Beco da Liberdade”, Excerto - págs. 155/157 – 2019, Quetzal editora
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