Chá com Letras Online:7.º azulejo - LEITURAS DE ÁLVARO LABORINHO LÚCIO V



LEITURAS DE ÁLVARO LABORINHO LÚCIO V
98.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


Excerto da obra, “O Homem Que Escrevia Azulejos” de Laborinho Lúcio

7.º azulejo

O NOVO HÓSPEDE

LEONTINA DA CONCEIÇÃO NÃO COMEÇAVA BEM O DIA. Tinha despertares assim. Aconteciam quando o passado se ia acumulando até se juntar todo e ficar pronto para desabar sobre ela. O passado, de duas, uma: ou se vive ou se abandona. O mal está em recusar vivê-lo quando ele persiste em manter-se firme na nossa memória. Então despreza-se, mas não se esquece. E quando surge à tona traz aos dias um mau começo. Foi o que aconteceu daquela vez. Leontina não gosta de olhar para trás. Seca de afectos e de filhos, dispensou, cedo demais, os primeiros. Os que o marido trazia para casa eram só restos. A prole, viera a encontrá-la, já tarde, nos hóspedes do Abrigo de Santa Dimphna. Quem não entende isso jamais compreenderia porque era ela tão terna e condescendente com eles e, ao mesmo tempo, tão ríspida e intolerante com quantos dos outros, a rodeavam. Só Lourenço gozava de uma atenção e de um cuidado especiais. Não porque precisasse dele, mas porque alimentava ainda a ilusão de que viesse ele a precisar dela. Até lá, eram os internados quem vinha arrulhar no seu ninho. Atormentava-a, pois, o medo de que algum desertasse, fosse ele qual fosse. Há tempo que vinha reparando em Arcangelo Corelli. Regressado de uma identidade que já antes fora sua, nela se mantinha agora como se fosse a verdadeira. E se era uma bênção ouvir o violino, todas as noites, cada peça que dela saía parecia um novo passo na caminhada para o retorno a João Francisco. Uma caminhada que conduziria, inexoravelmente, à partida.
Foi a véspera que faz começar mal do dia. A noite ia já adiantada quando ele pediu que a chamassem. Não lhe saem da cabeça as palavras que ouviu:
- A minha neta vai voltar amanhã. Como sempre faz. Não quero vê-la. Diga-lhe, por favor, que eu não quero vê-la nunca mais.
Era a primeira vez que falava na neta. A expressão fechada e tensa não permitia entender mais. Nem me deixava perguntar. Prometi que assim faria, se era essa a sua vontade. Quis saber mais:
- Digo-lhe que lhe chamou neta?
- Não é preciso – respondeu. – Diga-lhe só que não volte.
Toda a noite foi passada em claro. O dia não podia começar pior. Na missa das sete, a primeira da manhã, estava apenas meia dúzia de pessoas afastadas umas das outras. Atrás, de pé, ao fundo da capela, encontrava-se Arcanjo Corelli. Nunca o vira ali. Era mais um sinal. Projectei falar-lhe
quando saísse. Ao voltar-me, já não o encontrei. Teria ainda toda a manhã para o fazer.
Um novo hóspede ia chegar e era necessário cuidar dos preparativos para o receber. Escasseava informação sobre ele. Apresentou-se sozinho, sem ninguém, familiar ou não, que falasse por ele. Viera de carro até à vila, mas chegara ao Abrigo dentro de um reboque, sentado ao lado do condutor que falava do motor gripado da viatura e da insistência do “velho” em trazer a “carcaça” para cima. Sabia-se que era de origem francesa, e fizera-se munir do cartão de identidade, da carta de condução, de um extrato da conta bancária e de uma declaração médica, informado sobre o mal que padecia. Depressão severa, com tendências suicidas, a reclamar repouso, química adequada e atenção redobrada. Tinha um ar desolador, feito de desamparo e de amargura. D. Leontina arranhava o francês, mas, arranhões, já ele sofrera que bastasse. Lourenço ajudá-lo-ia, com certeza. De imediato o que importava era instalar o recém-chegado e enchê-lo de calor humano que ele mostrava ter reduzido a um amoroso ursinho de peluche. Não almocei. Juntamente com a primeira colher de sopa, chegou a Otília.
Pensei apenas: “que dia este, meu Deus.”
ÁLVARO LABURINHO LÚCIO, “O Homem Que Escrevia nos Azulejos”, págs. 208, 209, 210 – 2019, Quetzal editora

Imagem: Santa Dimphna
"Santa Dimpna é a santa padroeira das pessoas que padecem de transtornos mentais e neurológicos bem como dos centros de saúde e de profissões médicas relacionadas à saúde psíquica."




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