Chá com Letras Online: Excerto da obra, “O Homem Que Escrevia Azulejos” de Laborinho Lúcio



EITURAS DE ÁLVARO LABORINHO LÚCIO II
95.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal

Excerto da obra, “O Homem Que Escrevia Azulejos” de Laborinho Lúcio

23.º azulejo
Os tempos mudaram

O VALDEMAR E EU ACABAMOS, da mesma forma como tínhamos começado. Sem empolgamento no início, sem drama no fim. Ficámos amigos. Não para seguir a cartilha, mas porque era mesmo isso o que nós éramos. Ele continuou a vir. Era muito melhor confidente do que namorado. E, em pouco tempo, quase nos atropelávamos a falar das nossas paixões. Real, a dele. Idealizada, a minha. Valdemar não compreendia e mandava-me descer à terra. Eu ia-me a ele e chamava-lhe burocrata, uma espécie de amanuense do amor, acomodado à legalidade dos afectos. Não descansou enquanto não me apresentou a Mariana. Eram colegas na faculdade. Ele trabalhava de dia e estudava à noite. Ela trabalhava de noite e estudava de dia. Mariana era, como dizia, “relações públicas” numa cadeia de bares de strip ou show girls,actividade que, na expressão dela, “lhe granjeara um bom leque de conhecimentos numa classe média elevada, que pagava caro para vestir bem e para ver despir muito”. Tornámo-nos também amigas. Chateava-me que ela não tivesse ciúmes por causa dos meus encontros frequentes, lá em casa, com o Valdemar. Não havia qualquer razão para os ter, mas os ciúmes nunca carecem de razão, é mesmo de sua natureza dispensá-la. Eu é que precisava que ela tivesse ciúmes, e que fosse eu a causa deles, cedo percebi que confundia os ciúmes que ela não tinha, com a inveja que eu tinha dela. A Mariana amava e era amada. Eu fizera do amor uma fantasia, um desejo de procura, uma espera sem promessa de chegada. Penélope antes de Ulisses. O meu avô, depois da minha estúpida e desastrada investida, andava distante como nunca, áspero, mesmo nos encontros fugazes de corredor.
Foi, uma vez, o Valdemar quem me alertou. Procurara ocultar-me o que se passava, mas era agora demasiado evidente que o meu avô não andava bem e a amargura e a dor que revelava não se limitava ao sofrimento que a morte da minha avó provocara nele. Quando perguntei ao Valdemar pelo professor Honorato, acabei, involuntariamente, por lhe dar a senha que o levou ao meu avô. A escola passava por enormes transformações. E aquilo que de início parecia um bem, rapidamente se transformou em motivo de discórdia e de divisão onde, até então, imperava a harmonia e a camaradagem.
- Estás a falar de quê? – perguntei intrigada.
- Olha! Quase sem se dar por isso, a escola foi invadida por palavras novas. Fala-se agora da exigência, excelência, competências, resultados, competitividade, eu sei lá. Cada um tem, para cada uma delas, um sentido próprio, mas todos falam, como se esse, o seu, fosse o mesmo para todos os outros. Já calculas a confusão.
- Mas, tu não concordas? Assim, à primeira vista, parece-me bem, uma escola com essas referências… com esses objectivos.
- À primeira vista, dizes bem. A questão está em que, pouco a pouco, vai-se desvalorizando o que é essencial.
- O quê, por exemplo? Não estou a ver.
- De um momento para o outro, a escola perdeu o seu valor real, como um especial habitat social e humano, à medida que a educação se resguarda numa dimensão abstracta, puramente intelectual e, por isso mesmo, desligada da complexidade da vida, da realidade da escola.
- Podes explicar melhor? Gostava de compreender o que exactamente queres dizer.
Valdemar, na sua visão perfeccionista de burocrata aplicado, não queria fazer concessões no seu discurso, mas, tratando-se de mim, condescendeu:
- Numa palavra, isto é, numa análise simplista, direi que os alunos deixaram de contar. Entendes-me agora?
Limitei-me a abrir muito os olhos, o que foi bastante para que ele prosseguisse:
- Quero com isto dizer que se criou um protótipo de aluno, uma espécie de modelo definido idealmente. A partir daí, todos são tratados como se fossem só um. O problema é que as coisas não são assim. Há crianças que, pelas mais variadas razões, não se encaixam no modelo e que, por isso, tenderão sempre a ficar fora dele e serem excluídas.
“Mas, se isso é assim, então é a negação da própria ideia de escola”, pensei eu, enquanto Valdemar partia para outras considerações:
- Foi por isso que levou ao afastamento do professor Honorato da direcção, à sua ausência por doença, e ao seu posterior pedido de aposentação. Segundo ele, em defesa da sua dignidade como professor. Nunca mais ouvi falar dele – concluiu Valdemar, após um breve momento de silêncio.
Gostei de o ver triste. Parecia mais humano, o Valdemar. Agora sim, via-se que estava mesmo apaixonada. De certeza que já não corria para a namorada como se fosse a despacho.
Apetecia-me perguntar-lhe se ainda espetava a língua na orelha de Mariana mal chegava junto dela. Perguntei apenas:
- E então com o meu avô, o que é que se passa?
Valdemar levantou-se, caminhou de um lado para o outro pensativo, quando eu ia incentivá-lo a responder sem rodeios, antecipou-se:
- Tens de te preparar, Otília. Temo que o tempo do teu avô na escola, esteja também a chegar ao fim.
- Vá lá, Valdemar, diz tudo o que sabes – implorei.
- Na escola – prosseguiu ele – toda a gente conhecia a cumplicidade que havia entre o teu avô e o professor Honorato. Quando este foi destituído da direcção. ninguém se bateu verdadeiramente por ele. As pessoas defendem-se. Têm receio do que possa acontecer-lhes. Estão inseguras. O teu avô estava ausente e, quando foi informado, já não havia nada a fazer. As coisas não estão fáceis, Otília – tentou concluir Valdemar.
Não me dei por esclarecida. Que diabo, o meu avô era adorado por todos. Todos lhe pediam opinião. Quantas vezes não foi ele, com a sua calma, a resolver questões de indisciplina, ou antes, “… de disciplina… de disciplina”, como ele corrigia sempre.
- Lembras-te, Valdemar?
- Os tempos mudaram, Otília. Muito depressa. Ainda há dias, durante uma discussão entre professores, sobre currículos e conteúdos, um deles perguntou-lhe porque ordem hierárquica de importância colocaria as disciplinas de Matemática, Língua Portuguesa e Música. Sempre pensei que ele respondesse como tanto gostava de fazer connosco. Já estava a ouvi-lo citar Pascoaes ou a Sophia, e a declarar que a arte não explica, a arte implica. Como ele adorava repetir isto! Mas, não.
- O que foi, então, que ele disse?
- Com a paciência e humildade de sempre, limitou-se a responder que não sabia.
- O quê? – inquiri, incrédula e revoltada.
- É verdade. Embora, logo a seguir, num arremedo de amor próprio, acrescentasse que o que sabia era que se chega muito mais depressa e bem à Matemática e ao Português, partindo da Arte, do que se chega à Arte, indo do Português ou da Matemática.
- Ele sempre defendeu isso. Onde está a novidade?
- Pois é. O problema é que o nosso director estava presente. Não disse nada, mas retirou-se, deixando atrás de si um silêncio de morte.
ÁLVARO LABORINHO LÚCIO - “O Homem Que Escrevia Azulejos” - Os tempos mudaram, Págs. 126/130, 1.ª edição 2016 – Quetzal editores


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