Chá com Letras Online: Excerto da obra, “O Beco da Liberdade” de Laborinho Lúcio - LEITURAS DEÁLVARO LABURINHO LÚCIO I



LEITURAS DE ÁLVARO LABURINHO LÚCIO I
94.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal

Excerto da obra, “O Beco da Liberdade” de Laborinho Lúcio

… MARIA CACILDA LEVANTOU-SE para esperar o vento. Sabia que vinha lá e que trazia desgraça. Deixou a roupa que pespontava espalhada pelo chão e chegou-se à porta. Ficou de pé. Hirta. E o vento veio. Em rajada. Fustigou-lhe o corpo, os olhos, os cabelos. Trazido pelo vento veio o cunhado. Dobrou a esquina e estacou a olhá-la ainda ao longe. Vinha de fato. Parecia saído de uma cerimónia. Aproximou-se. Parou à frente dela.
- Bom dia, cunhada.
- Quem o matou?
Ernesto não estranhou. Conhecia a cunhada e sabia que adivinhava os ventos maus e as tragédias que vinham neles.
- Ainda não se sabe.
Maria Cacilda voltou a entrar. Quem passasse na largura vasta das redondezas ouviria o grito rouco, o ronco inumano e depois o abafo do choro soluçado por entre as pregas da amargura.
Fora há muito, no dia dos seus anos, quando fazia cinco que tudo começara. Estendia-se a mesa cá fora, ao calor de Agosto. Estava a aldeia reunida na festa. Cacildinha corria no grupo das amigas e, de repente, parou. Ficou a olhar os montes, lá ao longe. Ofegante, ainda da correria, crispou o rosto, encheu-o de pânico. Todos se voltaram quando ela gritou:
- Vem lá os ventos. Os ventos maus. E vão matar o menino.
Riram-se os presentes. Credo, disse a avó. E o vento passou. Varreu a mesa, abanou o arvoredo, assobiou e partiu. Pela rua abaixo, fronteira ao terreno da festa, vinha a correr o Pombinha. E gritava, agora ele:
- Acudam, acudam. Acudam depressa. É o miúdo do Zé Rato. Esmagado por um tronco. Ali, na beira do caminho.
E correram todos. Debaixo do carvalho tombado, com os cabelos misturados com a ramagem, surgiam, muito abertos, já parados, os olhos castanhos do menino.
Floriano Antunes conhecia bem a história de Maria Cacilda. Contaram-lha os velhos da aldeia, entre copos de três e cortadelas de chouriço. Encheram de tempero, as velhas.
Tinha artes de adivinhação, testemunhavam eles. Estava possuída pelo demónio, sentenciavam elas. Para os homens, Cacilda sabia dos ventos, tinha saberes que vinham em livros, saía ao pai, também ele levado num dia num galope rasgado de vento. Para as mulheres, menos dadas às submissões, certas de terem visto, a garupa do cavalo, atracada a ele, amante que escondia o assunto era de bruxaria e aliviavam-se com a memória da partida dela, escorraçada da terra onde nascera para se perder no esconderijo da cidade.
- Fora o cunhado quem o levava até ela. Floriano, que começara por falar do juiz, queria agora deter-se em Maria Cacilda. A viagem ia ser longa. Fiz-lhe a vontade.
- Era da mesma geração, ela e o Joaquim Quitério.
Apoucado, ele, nunca a adregara a juntar as letras e as contas reclamavam cálculos, coisa de cabeça, apenas própria de quem a tem. Seguiram, assim, caminhos divergentes. Maria Cacilda, recolhia dos dizeres da rua, acoitava-se em casa, ajudava a mãe na lida diária e lia, lia muito. A mãe venerava-lhe a inteligência, mas temia pelo futuro da pequena.
O pai, um valdevinos; ela, mulher sem posses e sem saberes para acompanhar a filha. Falavam por emoções, mais por gestos e atitudes do que por palavras…
ÁLVARO LABURINHO LÚCIO, “O Beco da Liberdade”, págs. 29/31 – 2019, Quetzal editora





Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.

Comentários