Chá com Letras Online: Um banco no jardim - LEITURAS DE ROSA LOBATO DE FARIA V



LEITURAS DE ROSA LOBATO DE FARIA V
79.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal


Um banco no jardim

O senhor Pascoal, tinha o costume de, quando saía do trabalho, atravessar o jardim público e sentar-se num banco daqueles antigos de tábuas e costas enroladas. No jardim já havia bancos modernos, de uns que têm para trás e para a frente, duros e direitos, com azulejos que arrefecem o traseiro. Os amigos costumavam ir beber uma cervejola, mas ele raramente os acompanhava: preferia aquele banco sossegado, que parecia ter ficado esquecido num recanto aprazível, com árvores onde os passarinhos cantavam. Talvez por ficar à sombra e um pouco isolado, nunca ninguém se sentava ali. Por isso, no dia 3 de Fevereiro de 2004, estranhou ver ali uma velha a ocupar o centro do banco.
Pediu licença e sentou-se, a velha fez que não ouviu. Era mal-encarada, meio desgrenhada, magra, vestia de preto e tinha os olhos baixos. Deve ser surda ou se calhar está a dormir, desculpou-se o Pascoal. E ficou com a ponta do banco, onde costumava pensar na vida e gozar a tarde quando não chovia.
Não fazia tensões de meter conversa com a velha, mas quando deu por si já estava a perguntar-lhe se morava para aquelas bandas porque nunca a vira antes.
Sou daqui e sou de toda a parte, disse a velha com uma risadinha roufenha.
Daqui e de toda a parte, estranhou o Pascoal.
Sou a Morte, disse ela sem levantar os olhos.
O Pascoal passou-se da cabeça.
Ai és a Morte? Pois então deixa-me que te diga que estás completamente maluca andas a matar rapazes novos que jogam à bola, meninas que são operadas à garganta, mães com bebés pequenos que lhes dá a dor de cabeça e tu tunga, vê lá se começas a ter um outro de critério mais equilibrado.
Pela primeira vez a Morte levantou os olhos que pareciam de vidro verde, mas não olhou para Pascoal. Pousou a vista um pouco acima da cabeça dele, um pouco à esquerda e um passarinho caiu morto da árvore, mesmo ali, quase aos pés da velha.
Porra, pensou o Pascoal, escapei por um triz, mas não se deu por achado. Continuou a descompor a Morte.
Ouve lá, minha maluca, porque é que tu não levas só as pessoas mais idosas, as que já cumpriram a sua missão, as que já não servem para nada, as que já estão podres de tanta dor, as que estão fartas disto? Sim, porquê?
Porque sou cega, disse a Morte, e levantou-se.
Então compra um cão, ele que fareje quem não presta, olha a grande cabra.
Ela já ia longe e o Pascoal não teve a certeza se ela ouviu.
Acontecia-lhe dormitar no banco e pensou que tinha sonhado. A morte não tem vagar para se sentar num banco de jardim a conversar com as suas futuras vítimas.
Passado coisa de um mês, falando com a Etelvina, voltaram a um assunto que já algum tempo os vinha tentado. Ela já estava reformada por doença, tinha um dinheiro de parte ele pedia a reforma antecipada e abriam uma pequena drogaria que fazia falta ali na rua: produtos de limpeza, sabonetes, utilidades. Precisamente estava devoluta uma lojinha dois prédios abaixo.
Vai o bom Pascoal pedir a reforma antecipada e diz-lhe a madame do balcão, Pascoal Antunes Laranjeiro? Nascido a 13 de Setembro de 1938?
Isso mesmo.
Falecido a 4 de Fevereiro de 2004. Outro!
Ó senhora, falecido como? Sou eu, estou vivo, não vê?
Diz o computador. Outro!
Ai a puta da velha anda a ver se me apanha, disse o Pascoal a lembrar-se do passarinho morto por cima da sua cabeça.
A madame do balcão lançou-lhe um olha tenebroso, deve ter pensado que era com ela, porque em tentativas subsequentes envenenou-lhe todo o processo e o Pascoal não abriu a droga da drogaria porque estava morto, o que se torna pouco prático para tratar as burocracias deste mundo.
Um dia em que chegou a casa um pouco mais tarde porque um dos seus colegas fazia anos e ele acompanhou-os nas cervejolas, a mulher disse-lhe logo à entrada,
Esteve aí uma velha à tua procura
Uma velha?
Uma velha. Tinha os olhos esquisitos e trazia um cão.
Trazia um cão, dizes tu?
Trazia um cão grosso e feio, tão mal-educado como ela. Disse qua voltava.
Pois, Etelvina, filha. Prepara o meu fato escuro, uma camisa branca, a gravata que eu comprei para o casamento da nossa neta, que desta vez não escapo.
Vais sair com a velha?
Olá se vou. A grande vaca seguiu o meu conselho.

Rosa Lobato faria, OS LINHOS DA AVÓ – “Um Banco no Jardim”, págs. 53/55, 1.ª edição: Novembro de 2004, ASA Editores, S.A.


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