LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XXIII
74.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
DE JORNADA
Este conto veio de pais a filhos. Conta-se à lareira todos, os invernos, em Trás-os-Montes. Só acabará quando não houver lareiras nesta província. Nem lareiras, lenha que aqueça os narradores.
O Morgado de Santa Quitéria, homem botocudo, abalou da aldeia pela primeira vez, para ir a Lamego, do outro lado do rio, aos cinquenta anos.
Era vulgar, naquele tempo, nascer e viver uma pessoa na concha de uma ladeia. O que não era vulgar era decidir-se um homem aos incómodos duma jornada no limiar da velhice. A ida do Morgado à cidade lendária, com o peso de cinquenta anos em cima de um cavalo, afligiu a família e alvorotou os vizinhos.
O que valeu, para sossego da Senhora Morgada, foi a confiança que tinha no cavalo e no arrieiro – envelhecidos em casa, à manjadoira e na cozinha, sem desgosto de categoria. Conheciam, melhor do que ela e o marido, o estirado caminho da cidade, aonde iam, pela carne e pelo trigo, todas as semanas.
Mesmo assim, a Senhora Morgada responsou o marido a Santo António – não fosse o inimigo, oculto em alguma brenha, empecer-lhe a viagem. Têm-se vistos exemplos… Ao Morgado, homem mazombo, é que não ocorreu ideia de perigo. Benzeu-se por se benzer, picou o burro e despediu – com o arrieiro à frente a romper caminho. Bem precisava de o romper, que a manhã ainda não era clara.
Passado o horizonte de Santa Quitéria, deparou-se ao Morgado, pela primeira vez, a serra do Marão – safira lapidada a preceito pelo melhor joalheiro. Sobressaía de uma série de largas cumiadas.
Aquilo é que o Marão? , perguntou o Morgado ao companheiro. Bem se diz lá que não dá palha nem grão. Qua há-de dar aquilo?
Foi esta observação que o Morgado de Santa Quitéria fez ao arrieiro ao encarar ao Marão pela primeira vez.
Se o Morgado de Santa Quitéria fosse poeta, diria ao arrieiro mais alguma coisa ou não diria nada. Certo e sabido é que chocaria um poema ou criaria um mito – o casamento de Apolo, ainda inocente, com uma serra virgem.
O Morgado não era poeta nem para aí caminhava. Quando, de cima do cavalo, à sua mão direita, lhe apareceu o fundo vale do Tanha, com povoações ainda adormecidas, perguntou ao criado:
Ola lá, Manuel, qual destes povos é então a cidade?
Não é nenhum, por enquanto… Saberá Vossa Excelência que esta pinhoca de casas, que parece feita à navalha, com ruas do lá vem um tão direitas como se as tirassem por pauta, é a Presigueda. Mais adiante, onde está a igreja, ao pé do rio, é Vilarinho. Além, é Alvações… de Tanha, que há outra Alvações. Mas, nenhuma é a cidade. Daqui lá…
Calou-se o fidalgo. Foram descendo vagarosamente, para o rio Corgo. No lugar das Paredes, amo e criado tiraram o chapéu à porta de uma capelinha.
Manuel!!, berrou o fidalgo.
Senhor!
Não é nada… No primeiro repente, ao ver esta capela, tão asseada, ao cimo desta rua, pensei que fosse já a cidade, como quem diz, a Sé. Tenho ouvido dizer, lá em casa, que há uma Sé na cidade.
Pois sim, fidalgo, mas daqui lá, morre a burra a quem a tange.
Ao atravessarem o Corgo, na união deste rio com o rio Douro, receou o fidalgo afogar-se, vendo a água humedecer, pouco a pouco, as pernas do cavalo. O arrieiro, de cima das poldras, sossegou-o, dizendo:
Não tenha medo, fidalgo, que ele está afeito…
Livres da água, perguntou o fidalgo:
Qual dos dois, afinal, é que é o Douro? O gordo ou o magro?
É o gordo, fidalgo. O magro chama-se Corgo. Na Régua, pequena vila como era então, quis o fidalgo à fina força, ver a cidade. Tanto comércio, tanto carro de bois, tanta pipa, tanto sal, tanta barrica de sardinha salgada… deram-lhe volta ao miolo.
Tira-me daqui, Manuel, que já estou arrependido de ter saído de casa. Para que é tanta pipa?
Cruzaram o ventre do rio Douro na Barca. A proa, como um cutelo alceiro, rasgou, de baixo para cima, a corrente do ponto do Clérigo. O fidalgo, de pé sobre o remoinho bulhento, manteve-se impávido. Subiu-lhe à carranca o doairo dum navegador.
Do outro lado do rio, na subida de Cambres, parou o cavalo e pôs-se a olhar para todas as bandas. Pareceu-lhe que as montanhas, como grandes meninas, dançavam de roda, acenando-lhe com lenços brancos. Sentiu-se estonteado.
Olha, Manuel, estou a ver que malho do cavalo abaixo!
Agora malha, fidalgo! Tenha mão…
Passando a Bugalheira, deram de costas ao rio Douro – parado, ao sol da manhã alta, como jiboia empanturrada. Faiscava.
Manuel, cismou o Fidalgo, nunca pensei que o rio Douro fosse tamanho lontro.
Chegados a Portelo, diz o fidalgo:
Graças a Deus, que sempre chegámos…
Inda não, fidalgo! Inda havemos de passar pelo Relógio de Sol. Depois… falaremos,
Amuou o fidalgo. Mas, reagiu… Endireitou, no selim, o corpo de atleta. Olhou para longe, para as encostas de Trás-os-Montes. Aqui e além, relampejavam aldeias.
Disseste aí, Manuel, que havemos de passar pelo Relógio de Sol… Meu Deus! Nunca pensei que o mundo fosse tão grande!
Ponham os olhos neste morgado os que almoçam em Lisboa e jantam em Paris, acham o mundo pequeno e querem ir à Lua procurar espaço.
**Leitura Presencial: Conto "O penitente" **
João de Araújo Correia – CONTOS DURIENSES – “ O Penitente”, págs. 43 / 46, 4.ª edição, 2016 – Âncora Editora
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
74.º ENCONTRO
Selecção de Maria José Areal
DE JORNADA
Este conto veio de pais a filhos. Conta-se à lareira todos, os invernos, em Trás-os-Montes. Só acabará quando não houver lareiras nesta província. Nem lareiras, lenha que aqueça os narradores.
O Morgado de Santa Quitéria, homem botocudo, abalou da aldeia pela primeira vez, para ir a Lamego, do outro lado do rio, aos cinquenta anos.
Era vulgar, naquele tempo, nascer e viver uma pessoa na concha de uma ladeia. O que não era vulgar era decidir-se um homem aos incómodos duma jornada no limiar da velhice. A ida do Morgado à cidade lendária, com o peso de cinquenta anos em cima de um cavalo, afligiu a família e alvorotou os vizinhos.
O que valeu, para sossego da Senhora Morgada, foi a confiança que tinha no cavalo e no arrieiro – envelhecidos em casa, à manjadoira e na cozinha, sem desgosto de categoria. Conheciam, melhor do que ela e o marido, o estirado caminho da cidade, aonde iam, pela carne e pelo trigo, todas as semanas.
Mesmo assim, a Senhora Morgada responsou o marido a Santo António – não fosse o inimigo, oculto em alguma brenha, empecer-lhe a viagem. Têm-se vistos exemplos… Ao Morgado, homem mazombo, é que não ocorreu ideia de perigo. Benzeu-se por se benzer, picou o burro e despediu – com o arrieiro à frente a romper caminho. Bem precisava de o romper, que a manhã ainda não era clara.
Passado o horizonte de Santa Quitéria, deparou-se ao Morgado, pela primeira vez, a serra do Marão – safira lapidada a preceito pelo melhor joalheiro. Sobressaía de uma série de largas cumiadas.
Aquilo é que o Marão? , perguntou o Morgado ao companheiro. Bem se diz lá que não dá palha nem grão. Qua há-de dar aquilo?
Foi esta observação que o Morgado de Santa Quitéria fez ao arrieiro ao encarar ao Marão pela primeira vez.
Se o Morgado de Santa Quitéria fosse poeta, diria ao arrieiro mais alguma coisa ou não diria nada. Certo e sabido é que chocaria um poema ou criaria um mito – o casamento de Apolo, ainda inocente, com uma serra virgem.
O Morgado não era poeta nem para aí caminhava. Quando, de cima do cavalo, à sua mão direita, lhe apareceu o fundo vale do Tanha, com povoações ainda adormecidas, perguntou ao criado:
Ola lá, Manuel, qual destes povos é então a cidade?
Não é nenhum, por enquanto… Saberá Vossa Excelência que esta pinhoca de casas, que parece feita à navalha, com ruas do lá vem um tão direitas como se as tirassem por pauta, é a Presigueda. Mais adiante, onde está a igreja, ao pé do rio, é Vilarinho. Além, é Alvações… de Tanha, que há outra Alvações. Mas, nenhuma é a cidade. Daqui lá…
Calou-se o fidalgo. Foram descendo vagarosamente, para o rio Corgo. No lugar das Paredes, amo e criado tiraram o chapéu à porta de uma capelinha.
Manuel!!, berrou o fidalgo.
Senhor!
Não é nada… No primeiro repente, ao ver esta capela, tão asseada, ao cimo desta rua, pensei que fosse já a cidade, como quem diz, a Sé. Tenho ouvido dizer, lá em casa, que há uma Sé na cidade.
Pois sim, fidalgo, mas daqui lá, morre a burra a quem a tange.
Ao atravessarem o Corgo, na união deste rio com o rio Douro, receou o fidalgo afogar-se, vendo a água humedecer, pouco a pouco, as pernas do cavalo. O arrieiro, de cima das poldras, sossegou-o, dizendo:
Não tenha medo, fidalgo, que ele está afeito…
Livres da água, perguntou o fidalgo:
Qual dos dois, afinal, é que é o Douro? O gordo ou o magro?
É o gordo, fidalgo. O magro chama-se Corgo. Na Régua, pequena vila como era então, quis o fidalgo à fina força, ver a cidade. Tanto comércio, tanto carro de bois, tanta pipa, tanto sal, tanta barrica de sardinha salgada… deram-lhe volta ao miolo.
Tira-me daqui, Manuel, que já estou arrependido de ter saído de casa. Para que é tanta pipa?
Cruzaram o ventre do rio Douro na Barca. A proa, como um cutelo alceiro, rasgou, de baixo para cima, a corrente do ponto do Clérigo. O fidalgo, de pé sobre o remoinho bulhento, manteve-se impávido. Subiu-lhe à carranca o doairo dum navegador.
Do outro lado do rio, na subida de Cambres, parou o cavalo e pôs-se a olhar para todas as bandas. Pareceu-lhe que as montanhas, como grandes meninas, dançavam de roda, acenando-lhe com lenços brancos. Sentiu-se estonteado.
Olha, Manuel, estou a ver que malho do cavalo abaixo!
Agora malha, fidalgo! Tenha mão…
Passando a Bugalheira, deram de costas ao rio Douro – parado, ao sol da manhã alta, como jiboia empanturrada. Faiscava.
Manuel, cismou o Fidalgo, nunca pensei que o rio Douro fosse tamanho lontro.
Chegados a Portelo, diz o fidalgo:
Graças a Deus, que sempre chegámos…
Inda não, fidalgo! Inda havemos de passar pelo Relógio de Sol. Depois… falaremos,
Amuou o fidalgo. Mas, reagiu… Endireitou, no selim, o corpo de atleta. Olhou para longe, para as encostas de Trás-os-Montes. Aqui e além, relampejavam aldeias.
Disseste aí, Manuel, que havemos de passar pelo Relógio de Sol… Meu Deus! Nunca pensei que o mundo fosse tão grande!
Ponham os olhos neste morgado os que almoçam em Lisboa e jantam em Paris, acham o mundo pequeno e querem ir à Lua procurar espaço.
João de Araújo Correia, NOITE DE FOGO E OUTROS CONTOS – “De Jornada”, Págs. 72/74 – Colecção duas horas de Leitura 27, 1974, Editorial Inova/Porto
**Leitura Presencial: Conto "O penitente" **
João de Araújo Correia – CONTOS DURIENSES – “ O Penitente”, págs. 43 / 46, 4.ª edição, 2016 – Âncora Editora
Conto publicado no grupo dia 03-02-2021 - 38º Encontro de de Pandemia
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
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