Chá com Letras Online: CAMILO FABULOSO - LEITURAS DE ARAÚJO CORREIRA



LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA

Estamos prontos para o nosso primeiro encontro presencial em tempo de pandemia!

Hoje às 15h00 vamos ler presencialmente João de Araújo Correia e tomar um CHÁ COM LETRAS

Cumprindo as orientações da DGS

Selecção de Maria José Areal
73.º ENCONTRO


CAMILO FABULOSO

NUMA das tardes do último Verão, encontrei no Porto, mais ou menos a meio da antiga rua de Malmerendas, a senhora D. Flora Castelo Branco, neta de Camilo e avó de uma gentil menina, estudante de Direito, que a acompanhava.
Anos atrás, foi na Rua Formosa que eu encontrei a senhora D. Flora. Quer dizer, para quem conhece o Porto, que o ponto de reunião da minha pessoa com a descendente do romancista se desviou para Norte uns tantos metros. A latitude subiu… Mas, o meridiano deve ter sido o mesmo. Está escrito que eu veja a senhora D. Flora em Malmerendas ou nas mediações de Malmerendas. Como é fatal ser Camilo o assunto da nossa conversa.
Na primeira entrevista, disse-me D. Flora que conheceu o Avô em pequenina. Ia a casa dele, em São Miguel de Seide, e o Avô fazia-lhe muita festa. Dava-lhe mimo para a cativar. E, quando tomava chá, queria que a netinha tomasse chá com ele…
Tomava chá? Pensei que fosse café…
Não, quando eu o conheci, tomava chá e gostava muito de chá.
Na segunda entrevista, perguntou-me a senhora D. Flora se eu já tinha ido a São Miguel de Seide, ver o museu, depois do último restauro. Disse-lhe que não, que fui lá uma vez, há muitos anos, e que nunca mais voltei.
Fui eu lá, e fiquei horrorizada. Eu, que conheci aquilo, não o reconheci. Aquilo não é a casa de Camilo… em nada! Nem nos aposentos, nem no que lá está… Vi ali muita coisa, que não pertenceu a Camilo, e falta ali muita coisa, que lá devia estar. Se ainda há gente viva, que, como eu, conheceu a casa de Camilo, porque a não consultaram?
Concordei com a senhora. Devia ser consultada quando se reorganizou o Museu. Ela e outras pessoas, principalmente a mãe de D. Flora, que morreu há pouco tempo e foi memória viva dos últimos anos de escritor, passados em São Miguel de Seide. Ouvi-a eu, à senhora D. Ana, em casa do seu neto José, na Régua, contar minùciosamente factos que precederam o suicídio. Pasmei da meticulosidade da octogenária. Porque a não ouviram? É crível que o não fizessem. Por questão de vaidade ou por questão de pressa, desprezam-se hoje muito os documentos escritos e os de carne e osso.
Desde a morte de Camilo, em 1890, até à morte de D. Ana Plácido, em 1895, D. Flora continuou por Seide, visitando a Avó, isto é, firmando o conhecimento da casa de Camilo. Porque a não consultaram?
Também D. Flora se queixou de fantasias que correm impressas à conta do Avô.
Essas fantasias, obtemperei, previu-as ele… Disse que os prelos, depois da sua morte, se haviam de entreter, mentindo, a seu respeito. Como de facto… Mas, que importa isso? O génio de Camilo resiste a tudo que lhe queiram fazer.
Avó e neta olharam para mim e sorriram como satisfeitas da minha espécie de consolação. Despedi-me de ambas, prometendo a mim mesmo voltar um dia a São Miguel de Seide. Quando ali fui, em estudante, a Casa de Camilo, restaurada pela primeira vez, deu-me a sensação do ninho de açor camiliano, principalmente o quarto do plumitivo, com uma prateleira pregada na parede, para ter livros e papel ao alcance da mão, quando escrevia na cama, e o grande escritório, com uma fila de janelas sobre os campos verdes e os cerros azuis longínquos – o país camiliano.
Se não encontrar em São Miguel de Seide o que lá vi, em estudante, ficarei desolado, como a senhora D. Flora. Mas, consolar-me-ei, repetindo: o génio de Camilo resistirá a tudo.
Se resistiu a si próprio, mentindo às vezes como um cesto roto, melhor resistirá a quem o imagine ou sonhe, querendo interpretá-lo… Não houve quem dissesse que Shakespeare não existiu? Quando, daqui a alguns anos, alguém afirmar que não houve Camilo, nem meio Camilo, provarão as suas obras que existiu o génio camiliano.
Outubro – 1957

João de Araújo Correia, MANTA DE FARRAPOS – “Camilo fabuloso”, págs. 105/109 – 1962, Imprensa do Douro, Editora

UMA VOZ

Eu só ouvia o coaxar das rãs e a voz da minha vizinha – o mais era silêncio. Ela rezava o terço numa varanda que dava para o rio. Eu ouvia-a da janela do meu quarto, rente à varanda. Levantava-me da cama e ia escutá-la todas as noites. Que curiosidade a minha, apesar de novo! Tinha só nove anos.
A canícula abrasara a terra durante o dia. Refrescava-a o negrume da noite polvilhado de estrelas. As rãs coaxavam tão aguçosas como se não quisessem deixar adormecer o mundo. Às vezes, subia do rio uma aragem que fazia estremecer as folhas de uma tília que tapava a minha janela e metade da varanda da minha vizinha. O que melhor podíamos descortinar era o céu todo estrelado. De espaço a espaço, um aerólito riscava o ar escuro. Era uma alminha que mudava de sítio na Casa do Senhor. Então a minha vizinha suspendia a reza e murmurava:
Uma alminha que se mudou. Dai-lhe Senhor, o eterno descanso!
Rezava pelo descanso da alma um breve padre-nosso e reatava o terço ou começava a monologar.
Ainda há quem diga que não existem alminhas. Que são estes lumes no céu, tão pequeninos e tão ligeiros, senão almas que Deus ilumina para que os homens acreditem nelas? Aquele meu homem, ai! Diz que são arolas da minha cabeça. Não acredita em nada. É um incréu. Casou comigo pela igreja, ajoelhou comigo à mesa da sagrada comunhão e logo no dia seguinte se pôs a fazer escárnio de um retábulo que pendurei no meu quarto. Isto não se fazia a uma filha de pais cristãos!
Padre-Nosso, que estais no céu. Que heresias aquela boca vomita! Não sei como se não abre a terra para nos engolir - a ele, porque as pronuncia, e a mim, porque as ouço. Se Deus quisesse, daria um exemplo. Não o dá, porque é pai misericordioso. Tem pena de mim, que sou sua filha. Quero-lhe tanto! Dá-me esta cruz para eu me aperfeiçoar. Que … é bem pesada! Um herege! Só me permite que eu vá à missa. Mais nada! Nem confissão, nem comunhão, nem terços, nem novenas. Veio aí um sábio pregar um tríduo. Morri pelo ouvir. Ai de mim, que me não foi concedida essa mercê! Poderei querer bem a um monstro como este? Quis-lhe de todo o meu coração, com toda a pureza da minha alma. Ele era tão bonito! Era e é. Que inveja causou o meu casamento e com que soberba segui até o altar o meu algoz! Diziam-me as senhoras piedosas que ele se regeneraria ao sopro da minha fé. Ora! Paguei bem paga a soberba com que o desposei. Em cada hora, em cada minuto da nossa vida em comum, me ofende a troco das minhas crenças. Oiço-lhe coisas que fazem tremer céus e terra. Olho para as paredes da sala e do quarto e afigura-se-me que as vejo aluir, tocadas como do vento da sua impiedade. A minha vida é um horror… um horror! Que me importam as infidelidades do homem? Tempo houve em que afectaram, se foi… o coração. O que não posso, senhor, é esquecer as ofensas feitas à minha alma. Dizer-me que a Hóstia é pão! Sempre metido com marafonas! Tudo lhe perdoo, mas… dizer.me que a Hóstia é pão comum, isso é que não lhe perdoo! Porque não posso. Quando virá ele do fado? Passa das duas horas. Venha quando quiser… Que me importa? Aqui, nesta varanda, estou com Deus. Com ele é que eu me quero. As próprias rãs… quem sabe se o não louvam naquele seu contínuo cantar desafinado? Negar a divindade! O que me vale é o pouco ou nenhum caso que ele faz de mim. Também não queria! Que vá para onde andou. Tudo lhe perdoo, menos as heresias. Isso é que não.
Ai! Se ele fosse como o Morgado! Aquele, sim. Com que devoção assiste à missa – só visto. Não tira os olhos de mim. Já me lembrei de ir a outra igreja. Mas, coitado, se para mim olha, vejo que é para me lamentar. Nem outro pensamento pode caber naquele espírito votado a Deus. Não pode… Aqueles olhos tão lindos, tão puros, tão azuis, são já pedacinhos do céu dos bem- venturados. Olham para mim com tanta pena, que chega a ser meiguice. Eu, pobre de mim – Deus sabe que não é pecado – sinto-me atraída por aquele olhar. Consola-me, Senhor, tão doce compaixão! Porque não casei eu com o Morgado? Seríamos tão felizes! As nossas almas gémeas caminhariam a par até ao infinito. Seríamos tão felizes! Bem se matou para que eu o quisesse, e eu, casei com o outro. Vaidade minha… Era o mais belo homem de Portugal. Era e é. É o meu homem, com ele é que eu me casei. O Morgado é santo. Dizem que até faz versos… Três horas e aquele meu senhor sem vir! Que lhe terá acontecido?
Esmorecia a voz. Empalideciam as estrelas. Afroixava o cântico das rãs. O hálito da madrugada fazia sussurrar a tília. Ouvia-se um ruído de passos numa escada.

João de Araújo Correia, NOITE DE FOGO E OUTROS CONTOS – “Uma voz”, Págs. 54/56 – Colecção duas horas de Leitura 27, 1974, Editorial Inova/Porto



Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.




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