LEITURAS DE LUÍSA COSTA GOMES
71.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
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O Branco foi talvez o único que não se importou quando soube que a auto-estrada passaria a cem metros do bairro. Gostava de carros, o ruído fazia-lhe companhia. Olharam-no de viés porque recusou participar no abaixo-assinado; mas durou pouco a inimizade. Dois meses depois, quando a construção começou, já ninguém se lembrava das palavras trocadas.
Fez logo grande intercâmbio e criou amigos entre os trabalhadores. Nas tardes de Julho levava-lhes um jarro de vinho gelado, uma garrafa de água e ficava a conversar sobre os que eles quisessem. Uns gostavam de se queixar, outros preferiam calar-se e olhar a distância, medir o caminho que faltava fazer. Sentados um instante à sombra, em pé no meio das máquinas, os homens aceitavam o Branco.
Aquele bocado de estrada era como se fosse também obra dele. Fez um esforço para interessar nela alguns vizinhos, que paravam a olhar o alcatrão fresco e do negrume recolhiam apenas nostalgia. Diziam que a poeira fazia mal às hortas e o Branco encolhia os ombros, ele mesmo nunca tivera alfaces mais risonhas. E, de repente, as obras acabaram, vieram os carros e as velocidades. O Branco alterou as rotinas. Estava mais tempo em casa e no jardim. Gostava de passear, às noites quentes de Verão, na ponte que cruzava por cima, na perpendicular, a auto-estrada. Fumava a olhar as luzes vermelhas que se afastavam e caminhava, parava, debruçava-se ligeiramente sobre o muro para ver melhor, caminhava de novo.
Acontece que uma noite saiu de casa um pouco mais tarde que era costume. Isto não o incomodava, porque além de ser sozinho e não dever explicações ou métodos a ninguém, não se afeiçoava aos hábitos pelo rigor das horas, mas pelo gosto que deles tirava. E enquanto se passeava a fumar para cá e para lá, viu um carro despistar-se, capotar, dar duas voltas sobre si mesmo, deslizar invertido sobre o macadame e chocar contra o separador de metal. Depois imobilizou-se, de patas no ar, a deitar fumo.
O Branco olhou para todos os lados à procura de auxílio. Não havia ninguém. Atirou o cigarro e correu como pôde, os olhos pregados no automóvel, esperando o pior. Mas teve de parar no caminho e descansou sentado na berma, a mão sobre o peito, espiando o carro. A última parte do trajecto já a fez em passo moderado, um pouco por preocupação consigo, um pouco por medo ao que iria encontrar.
Quando se baixou para espreitar à janela do condutor, viu um homem inteiramente hirto, teso como um peixe, de cinto de segurança apertado e as mãos profundamente agarradas ao volante. Olhava, fixo, o vidro da frente.
Pode sair – disse o Branco -, acho que está vivo.
O homem não se mexeu. Parecia um boneco de cera, que não traia emoção nenhuma senão no excesso da compostura. Tinha os cabelos lisos pendurados da cabeça caindo a direito em direcção ao tejadilho. E a gravata passava-lhe ao lado do nariz, por cima do olho esquerdo, deitada sobre a fronte.
Pode sair – insistiu o Branco -, está tudo bem.
Levantou-se para respirar fundo e apreciar os prejuízos no carro. O tejadilho estava ligeiramente abatido, uma ou outra roda ainda circulava em seco; o capot ficara amolgado, as luzes piscavam intermitentes. O resto estava intacto.
Você teve cá uma destas sortes! – exclamou o Branco cheio de ênfase. – Eu estava acolá em cima, vi tudo e até disse, pá, aquele não se safou, aquele não há hipótese. Você desculpe, mas foi mesmo assim.
E quando se baixou outra vez, o homem disse: - Sou Karateca, sei cair.
Falava entre os dentes, como se quisesse convencer. Ainda repetiu mais duas vezes, num murmúrio firme, que era Karateca e que sabia cair, depois desapertou muito devagar o cinto e numa ginástica complexa, deixou-se deslizar sobre o tecto do carro e magoou um ombro.
Homem, você tem uma sorte do caraças! – repetiu o Branco, e deu-lhe uma palmadinha nas costas, amigável, admirativa. – Um acidente destes e nem uma arranhadela!
O homem esfregou o ombro, encarou dolorido o Branco, sem o ver, e pôs-se aos encontrões ao carro, só com a mão livre, a pensar que conseguiria virá-lo. O Branco disse que ajudava e ajudou. O carro baloiçava sobre a capota e permanecia invertido. Pararam os dois, olharam à volta, não havia ninguém. A noite escura sobre a auto-estrada, os campos serenos à luz amarela dos candeeiros.
Mais um esforço! – disse o Branco. – Um, dois, três. Conseguiram afinal virara o carro de lado, sobre a porta do condutor. Empurraram-no depois e ele caiu sobre o asfalto com um estrondo de molas e peças soltas. O homem sentou-se ao volante e rodou a chave na ignição. Pegou à primeira. Saiu, perfilou-se diante do Branco e disse:
Obrigado pela ajuda.
Estendeu-lhe a mão correspondente ao ombro magoado, mas lembrou-se, mudou de mão, apertou com solenidade a do velho, meteu-se no carro e marchou.
O Branco ficou parado no meio da estrada a vê-lo afastar-se. Caminhou pela berma até casa, pensativo. Aconteciam as vezes coisas estranhas na vida, coisas como esta e outras, antigas, que já esquecera. Quando se apresentavam fenómenos assim, o Branco, intrigado, queria poder compreendê-los, queria explicá-los. E enquanto caminhava via de novo o homem sentado como um boneco, de cabeça para baixo, rígido de pânico, a murmurar para si que era Karateca e que sabia cair.
O mundo tinha um decurso regular, o tempo passava sem sobressalto e era como se fosse para sempre um dia atrás do outro. Mas eis que se dava um caso que nos punha diante da iminência da destruição, que nos fazia ver aquele decurso regular do mundo pelo que ele era – um artifício para nos proteger, a nós que permanentemente existimos, frágeis, indefesos, na fronteira para a morte, não contando senão com o feliz acaso para nos salvar. Chegando a casa, o Branco ainda vinha impressionado. A morte, depois da reforma, já não é uma estranha, está próxima e inscrita no programa, mas sempre como linha de horizonte. Serviu-se de aguardente e acendeu a televisão. Começavam as últimas notícias. Não conhecia o locutor, reparou só que era orelhudo, que tinha a gravata descentrada, que parecia assustado. Que era um rapazinho novo que lutava como podia para ter um grande futuro. O Branco ouviu ainda um bom bocado o que ele tinha para dizer, relatos de catástrofes, incêndios, gente a morrer de fome, a guerra na Jugoslávia, o vaivém dos políticos. Mas não lhe saía da cabeça o acidente e, farto já de ouvir o rapazinho, levantou-se do sofá e tirou-lhe o som.
Hoje também me aconteceu uma muito boa – disse o Branco ao locutor do telejornal que o olhava, mudo e sincero. Depois rui-se e bateu com a palma da mão no joelho. – Hoje aconteceu-me uma mesmo muito boa.
GOMES, Luísa Costa (2001). Contos Outra Vez. 1.ª Edição, APE – Associação Portuguesa de Escritores, [Lisboa]. Conto: Últimas Notícias, págs. 63-66.
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