Chá com Letras Online: EVA - LEITURAS DE MARIA JOSÉ AREAL II


LEITURAS DE MARIA JOSÉ AREAL II
69.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal


EVA

Era dia de domingo.
O sol batia de frente na gente
Mostrando os sinais emergentes de vida.
Ela recuou em si
Para saber de si
E quase não se encontrava.
Mas o sol teimou em sorrir
Cresceu na intensidade,
Fez-se luz,
Fogo,
Chama em brasa.
Entrou na igreja da sua paróquia naquela manhã de domingo, como quase sempre acontecia. Entrou e olhou à sua volta, como que justificando aquele tempo de poisio. Esticou o olhar até ao Altar-Mor e pensou em Jesus Cristo, no seu Deus e em todo o ritual a que se habituara desde menina. Um ritual interiorizado, sabido, que lhe emprestava a serenidade e a mansidão de que tanto precisava. Ajoelhou-se. Benzeu-se e agitou-se. Um turbilhão de pensamentos toldaram-lhe aquele momento tão particularmente seu. E não o entendeu.
Naquele desconforto e em pensamento nu, o seu desassossego cresceu. Cresceu e fez-se tapume. O ar rasgava-lhe o peito e uma lágrima deslizou cara abaixo. Levantou-se, olhou e saiu.
Lá fora, homens e mulheres deslizavam no tempo e nas ruas, alheados e enconchados, e ninguém a via, naquela fuga de sem rumo certo, naquela saída de si. Deambulou pelas ruas que eram suas. Cruzou-se com conhecidos e amigos, escutou os seus passos e sem saber o rumo de si, foi ter ao cais do rio. Espargindo o olhar até à linha do horizonte, deixou-se cair no banco de madeira pintado de verde, bem defronte da outra margem do rio. Pouca gente por ali andava.
O rio crescia, crescia até bordejar a borda de granito que os homens teceram para o confinar no seu lugar. O rio sofria. Ela sabia.
O sol cresceu e aqueceu. A terra cedeu àquele calor acendendo vontades da sombra dos amieiros, de um mergulho no rio, ou mesmo de sentar naquele bar – “O Luar” – restaurado, fazia pouco tempo, pelos novos inquilinos, vindos de longe.
Eva levantou-se, sacudiu o cabelo negro, liso, longo. Despediu-se do rio com um sorriso no canto da boca e dirigiu-se para o bar. Reparou na nova decoração. Linhas fugidias como pensamentos desnudados, marcavam o rumo do tecto para sul. Velas triangulares em pontos desenhadas, cores vivas, bem cuidadas, e sobretudo, as palavras que davam forma ao poema “Há mulheres” de Sophia de Mello Breyner Anderson, naquela parede do fundo, iluminada pela luz que descia do lado do rio. Sentou-se e leu o poema. Leu e soube-lhe bem sabê-lo de cor. Bebeu cada palavra com mais intensidade ainda, e teve a ousadia sadia de pensar, que também ela podia ser uma daquelas mulheres. “Há mulheres que trazem o mar nos olhos…”
A um canto do bar, um jornal jazia aberto na mesa encostada à parede do poema. Ao lado, uma chávena de café e um livro fechado. “O sorriso de Deus” de António Alçada Baptista. Surpreendente. Quem seria? Pediu um café cheio em chávena escaldada e um copo de água. Respirou profundamente na tentativa de espargir aquele inusitado desassossego. Tirou do saco o seu caderno de folhas lisas, preparando-se para despejar no papel as palavras que dariam forma e sentido àquele sentir. E que palavras podiam materializar aquele caos fervente que a embrulhava por dentro? Estava vazia de palavras e tão cheia de pensamentos. Como expressaria aquela aflitiva e terrosa sensação de se ter desencontrado de si, de se ter desacertado do mundo?
Alguém passou perto de si. Alguém parou junto de si, mas ela não deu por nada. Continuava esfregando o lápis nas mãos como esfarelando as palavras que teimavam não chegar. Alguém puxou uma cadeira. Alguém se sentou e falou.
Olá! Que linda está a menina! Que pensamentos são esses que nem deu pela minha chegada?
Despertou daquela letargia. Olhou e viu aquele tio, que aparecia periodicamente em casa de seus pais, para uma refeição demorada. Era o tio João, irmão de sua mãe, em nada parecido com ela, nem na forma do corpo nem na textura da alma, muito menos no jeito da vida que fez sua. O tio desamarrado das convenções sociais, dos preceitos dominicais, dos nós da vida. O tio que juntava todos os tostões para dar a volta ao mundo, fazer-se à conquista doutras gentes e regressar, para de novo partir, cada vez mais saborosamente diferente. Aquele tio que amava a vida da forma mais solta e desprendida, aceitando o que lhe cabia como parte, em cada situação vivida. Contava o que descobria, falava do que via, da força do amor nos amores que encontrava e das perdas que lhe sucediam, de uma forma tão sagrada e tão virtuosamente autêntica.
Aqueles jantares alongavam-se noite fora, deslizando em pano de fundo, como lufadas de um ar tão fresco que desconhecia. A sua mãe ria. Escandalosamente deleitada ria do que ouvia. O seu pai desconcertava o concerto que escutara, tentando chamar ao cerco onde vivia, aquele seu primo tão inteligente quanto “vadio”.
Atónita, quase mesmo em desalinho, levantou-se devagar para poder acreditar. E atirou-se para aqueles braços que sabia serem seus, dizendo quase em surdina:
Olá, querido tio! Meu querido tio, quantas saudades! Bem que precisava falar contigo. Ter uma conversa longa e demorada, daquelas que só tu sabes fazer acontecer.
Abraçaram-se ternamente, demoradamente. Sentaram-se e de mãos nas mãos procurando sossegar o momento. Marcaram um encontro na porta da faculdade onde Eva frequentava o 3.º Ano de Ciências Históricas, logo para o dia seguinte, antes mesmo de se fazer anunciar à família. Tinha chegado naquela manhã de Paris e queria descansar. Por isso alugara um quarto de hotel bem no centro da cidade. Depois, estaria pronto para conversar e escutar os discursos desafiantes da família, que continuavam em não entender aquele ser, que levava a vida mais desconcertante que conheciam. Que tinha deitado fora uma carreira brilhante de gestor, que não sabia dos negócios da família, nem mesmo do montante da herança já dividida. Que não casava para acalmar os ímpetos de cavaleiro andante, que, que…
Por outro lado, o que mais assustava o João e tanta pena lhe causava, era saber do paradigma de vida da sua irmã Joana, mãe de Eva. Mãe a tempo inteiro, esposa sem tempo, dona de casa esmeradamente atenta, mulher alinhada por fora e por dentro. Desconhecia o empapado da chuva, nem mesmo se o vento lhe fugia. Olhava a vida por dentro da vidraça e de sabores o que sabia? Não ressoavam tambores de alegria nem dores agudas na dúvida. Vivia na sornice dos dias, que iam passando afastados de si. Amava tanto aquela irmã! Se amava. Cheirava sempre a colo de mãe. Sempre cheirava a colo de mãe.
Eva era a sua sobrinha preferida. Tinha com ela, longas e demoradas conversas, salpicadas de risos, abraços, colos e vinho. Gostavam ambos das mesmas coisas. Preferiam o sol à chuva, o mar ao rio, o chocolate quente ao leite, a poesia ao romance policial. Jantavam frequentemente no hotel onde se hospedava e subiam ao quarto para um deambular solto mas estruturante, de conversas feitas no sabor do saber, na sedução das palavras que se colavam ao corpo e à alma como beijos. Ela escutava-o atenta, fazendo com ele, o caminho das vivências ali espalhadas atapetando o chão. Ele sentia que Eva era tão diferente dos pais e provavelmente bem desigual dos seus pares. Era adulta, temperada em sal-gema, promotora da vida plena. Era muito mais parecida consigo. Sabia que podia confiar nela, contar-lhe tudo, mesmo o mais íntimo de si, e até mesmo o desabotoar da sua alma, falando da Laura, última mulher que conhecera e que lhe havia roubado um bom pedaço do seu desirmanado coração. Havia como uma agregação de sentimentos muito parecidos, similares, brancos, tornando-os parceiros de corpo inteiro. Amavam aqueles jantares. Amavam aquelas conversas que nem o tempo fazia parar.
Naquele dia, Eva procurou o Gonçalo, amigo colorido e colega da faculdade, para desmarcar o encontro marcado no bar do cais. Fez-lhe saber da chegado do tio João e do seu irrecusável convite para jantar. Vestiu-se de branco, alindou o cabelo, pintou os lábios de rosa e saltou para a rua com vontade de correr.
O João lá estava como prometera. Atravessou a avenida e foi abraçá-la. De mãos dadas, como dois namorados, caminharam até ao fundo da avenida ladeada de árvores de grande porte, procurando saltar de sombra em sombra, como duas crianças a jogar a “macaca.” Entraram no café da esquina. Sentaram-se bem pertinho um do outro e tomaram café.
Já escolheste o restaurante para o nosso jantar? – perguntou Eva, para saber se o regresso a casa seria demorado.
Pois, não. Sinceramente nem tive tempo para pensar nesse pormenor. Poderás ser tu a decidir. O que importa mesmo, é que o espaço te agrade e se houver música tanto melhor.
Óptimo. Vamos ao Capitólio. Fica perto da Ribeira. Sei que tem uma banda residente.
Falavam entusiasticamente, como se o dia nascera só para eles. O tempo corria quase redondo e uma aura de felicidade tomava conta do corpo, da alma, do chão e do ar. Onde está a Eva de ontem? Para onde mandou o seu desarrumo e desassossego? A chegada do João fora providencial. Era um sinal que marcava o rumo do tempo.
Falaram da Laura. Eva começou por saber que mais uma mulher, feita de festa e de encantamento, entrara na vida do tio, como acontecera com todas as outras. E como com as outras, a perda parara de sangrar, ficando a gratidão e saudade dos belos momentos. João sabia perder uma mulher, porque “ninguém é de ninguém”, dizia frequentemente. Este era o seu credo de vida no diálogo com as mulheres. Não residia em si aquele sentimento de posse tão comum, que vai matando as relações. “O amor tem que ser dono de si mesmo e não de quem o sente. Amar só pode ser um acto de liberdade sem teias nem peias”.
O dia ia descendo. O sol mostrava sinais de cansaço, preparando-se para dar lugar à noite que atrevidamente fazia a sua chegada. Era a hora da volta no dia. A hora azul, momento de magia. Ambos se levantaram no mesmo instante que um som forte e estridente vindo da rua, provocava um grande alarido fora e dentro do café. O que teria acontecido?
Bastaram alguns momentos. A notícia corria ligeira. Um jovem, estudante, tinha batido de fronte numa daquelas árvores de grande porte, que ladeava a Avenida. Tinha a vida por um fio.
O jantar ficou adiado.
Uma semana depois…
Eva deixou a faculdade, a casa, o cais… e passou o tempo no quarto do hospital, onde Gonçalo permanecia em luta pela vida.
Ali, deitado expunha a vulnerabilidade do Homem e a sua impotência em expurgar os medos e receios e mesmo mudar o rumo da vida. Esperava o tempo passar e ditar o resultado da sua luta. Da sua luta e da luta de todos os técnicos de saúde, que sem pausas, nem vagares davam o melhor de si.
Exausta e em desalento, Eva começava a questionar a própria luta. Levara consigo um livro de poemas de António Gedeão. Ia ler-lhe os seus favoritos, como havia feito com outros poetas durante toda a semana. Lia em voz alta, fazendo roçar cada palavra no rosto de Gonçalo. Colava cada verso na palma da sua mão. Falhou-lhe do sol, da rua, dos amigos e dos livros e da urgência da vida. Cantou-lhe canções em surdina, lera-lhe os jornais do dia… Já cansada reclinou a cabeça na cadeira e deixou-se ficar de olhos fechados, quase resignada, licenciando o tempo passar.
Alguém bateu à porta. Assustou-se. Talvez, se tivesse deixado adormecer. Era o Dr. Domingos. Vinha como todos os dias, fazer a “visita” aos seus pacientes. Cumprimentaram-se, trocaram algumas palavras de circunstância e falaram do Gonçalo com reservas e muitas precauções à mistura. Nada de novo. Tudo igual.
O dia era de domingo. O sol nascera decidido e prometia um dia de calor, adivinhando-se mais vida nas ruas, nas praças, no cais.
Eva colou o rosto à janela e duas lágrimas soltaram gemidos alados.
Gonçalo tossiu. Olhou e viu o sol entrando pela vidraça.

MARIA JOSÉ AREAL – “Na eira dos pardais” – Eva, Págs. 103/109, Chiado Editora, 2013

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