Chá com Letras Online: UM CRIME - LEITURAS DE MARIA JUDITE DE CARVALHO


LEITURAS DE MARIA JUDITE DE CARVALHO
64.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal


UM CRIME

Antes de mais havia a senhora bonita sentada a ouvir boa música – Bach, por exemplo, podia perfeitamente ser Bach – e também a fazer tricot. Espanto-me um pouco por achar nessa altura bonita uma mulher daquela idade e, pensando melhor no caso, creio que a beleza dela era de ouvir dizer. A minha avó declarava: “É muito linda, a senhora. Parece uma imagem.” E a imagem fora-se formando no meu espírito, que nada tinha ainda de iconoclasta. Portanto nesse dia – nessa tarde – a senhora bonita. Junto dela, no chão, a filha, de tranças loiras. Eu gostava muito de cabelos loiros nesse dia em que ainda não soubera e não pecara. Toda eu tendia pois para a admiração incondicional. A senhora era bonita, a filha tinha de ser bonita, o filho era com certeza bonito. Bonitos, isto é, simpáticos, bonzinhos, agradáveis à vista. Vínhamos visitar a senhora. Durante a doença do avô fora incansável. Uma santa, enfim. Filhos de santa, santos eram, decerto.
Antes de ver o rapazinho, de momento escondido por um grande fauteuil de veludo, reparei – devo ter reparado – nas rosas amarelas. Lindas. Cheiravam que era um gosto. A senhora beijou-me na testa – ou no ar? – e logo que a minha avó se sentou, muito devagar, cerimoniosamente, perguntou-lhe:
“Porque traz a pequena de preto, Lúcia? Tão novinha…”
A minha avó deu uma explicação qualquer que não percebi, talvez porque acabava de avista o rapazinho às voltas com um grande livro colorido.
A senhora deu-me, de resto, a impressão de não ter ouvido e até de ter logo esquecido o que dissera. Dirigiu-se aos filhos, disse-lhes que levassem a Lourdinhas – a Lourdinhas era eu – para o quarto dos brinquedos. E que se portassem bem. Tinham ouvido? Que se portassem bem. A Bé que me mostrasse a boneca espanhola que o menino Jesus lhe dera.
Caminhei ao longo de um corredor apertado, entre a Bé cheia de paciência – de muito visível paciência – e um rapaz grande, de cabeça redonda e encaracolada, que se chamava, salvo o erro, João. Vejo um ser pequenino e enfezado, coberto de trapos pretos e tristeza obrigatória (segundo o critério da minha avó, rir até parecia mal quando o avozinho, coitado…), um ser pequeno, pois, conduzido ao quarto dos brinquedos, que ficava ao fundo da casa. Eu nunca tinha visto um quarto de brinquedos, ignorava mesmo que tal coisa, tão luxuosa, existisse. Vi bonecas por todo o lado, jogos, soldadinhos, um cavalo branco de esporas pendentes e crina bem espetada. E ao canto, uma árvore de Natal. Senti-me deslumbrada. A Vitória de Samotrácia não me causou, quando mais tarde a vi, impressão semelhante.
A Bé observava-me com ar sorrateiro. Então que tal?, devia pensar. Eu, moita. Que havia de dizer? Que era bonito? Que era grandioso? Não, grandioso ainda não fazia parte do meu vocabulário então.
“Que brinquedos tiveste?”, interessou-se a menina, de passagem. “Eu tive uma bicicleta. E o João outra. Comprou-as o papá, claro, mas nós temos que fingir que ainda acreditamos no menino Jesus. Eles gostam assim. Que idade tens?”
“Seis anos.”
“És muito pequena. Eu já tenho sete, e o João oito.”
Baixei os olhos. Ela, no entanto, não me poupou: “Diz lá que presentes tiveste, anda.”
“O meu avô morreu e a avó…”
“Ah, o teu avô, é verdade. Foi empregado do papá, não foi?”
Acenei que sim. De resto, aquela morte, que tantas lágrimas me fizera chorar, pareceu-me, de súbito, providencial porque evitava que eu confessasse que não tinha tido presentes e que o meu Natal fora festejado com três pastéis de nata que a prima Cândida me trouxera da pastelaria.
“Queres ver a boneca espanhola?”
Eu disse que sim e ela abriu um armário, complacente, tirou cá para fora uma coisinha linda de grandes olhos azuis e boca rosada. Bé exibiu-a em minha intenção mas sem consentir que eu lhe tocasse. Na verdade tinha perguntado se eu queria ver a boneca, assim como a mãe lhe dissera que me mostrasse a boneca. Tudo certo.
“Chama-se Dulcineia.”
O rapaz, que ainda não dissera nada, avançou para mim, de mãos nos bolsos. “Onde diabo estão os teus pais?”, perguntou.
Dei então uma resposta incrível, terrível, triste, tudo. E com a maior convicção. Uma garotinha de seis anos que olha em frente e diz com seriedade:
“Não tenho pais, nunca tive.”
Não compreendi na altura como aquela minha declaração e o ar com que a fizera eram engraçados, mas o mundo desabou de riso. Ele rebolava-se no chão, enquanto as tranças dela voavam de cá para lá como cobras loucas. E, por entre gargalhadas, repetiam as minhas palavras: “Nunca tive. Nunca tive.”
Ora eu falava com a maior das convicções. Nunca fora à escola e ignorava que os pais eram necessários à vida. A avó – soube-o mais tarde – preferia não falar daquela filha leviana que partira pouco depois de eu ter chegado. Era assim, a avó.
“Pois não sabes, grande parva…”
“Não sei nada, não sei nada…”, choramingava eu. “Tinha o avô, tenho a avó.”
Sentara-me no chão, embezerrara. Chorava também, enquanto eles, já muito científicos, me comunicavam o seu saber. Chorava tanto como uma fonte de inverno, creio que não ouvi metade do que eles me diziam. Quando se calaram e descobriram que eu não parava de chorar, começaram a ficar preocupados.
“Pronto, pronto”, disse o João. “Já aqui não está quem falou. Nunca tiveste pais, vieste de França, pronto.”
A Bé propôs-lhe que fosse lá para dentro a ver se eu me calava.
“É mesmo parva, não é?”, perguntou o irmão, antes de saírem, ela primeiro, ele logo a seguir.
O meu choro foi ficando mais pequenino, depois parou. Junto de mim, em cima de uma cadeira, ficara a boneca espanhola. Peguei nela devagarinho, pu-la no chão, piei-a uma, duas, muitas vezes, pisei-a até a sentir mole. Depois segui sozinha pelo corredor fora, guiada pela voz monocórdica da minha avó, contando as suas desgraças.
Até ao fim da vida nunca ela percebeu porque razão a senhora se recusou daí em diante a recebê-la. Esse foi, de resto, um desgosto que havia de a acompanhar à cova.

MARIA JUDITE DE CARVALHO – Obras completas, Volume III – Tempo de Mercês, “Um crime”, págs. 357/360 - Edi. Minotauro, 2018


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