Chá com Letras Online: Domingo - LEITURAS DE IRENE LISBOA

LEITURAS DE IRENE LISBOA
66.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal


Domingo

Amanhã era hoje. Estou só. É já quase um estribilho.
Aborreceu-te vir-me acompanhar um pouco porque era domingo. Domingo, dia do populacho…
Não passei o dia triste nem contente. Pensei que podia alguém ter tido a gentileza de afrontar o domingo… pensamentos de vaidade, porque eu já considero vaidade tudo o que não seja humilhação. Nem tenho o desejo de vida e interesses partilhados, de me repartir.
Aqueles pensamentos, aquelas impressões tão vivas que dias atrás me acompanhavam e laceravam, isso mesmo se desfez. Sinto-me só… de outro modo. Sem saber o que há-de vir, muda, acanhada, sem cá nem lá.
Aqui te quero dizer… não sei se deva ser já. Que tu muito tens feito para me desgostar e mirrar, desvanecer os bons impulsos, o gosto da fraqueza e da sinceridade.
Já antes, por cartas e nos poucos passeios que demos, eu senti como tu eras pouco exuberante, pouco expansivo e pouco sensível. Mas queria-me enganar… Eu precisava tanto, tanto de amar e de receber um poucochinho de amor! Tudo me contentava e a minha imaginação compunha o resto…
Em todas as cartas me queixava, mas teimava em esperar, alguma coisa havia de vir melhor.
Momentos bons, aqueles que se continuam com o pensamento, a doçura do bom entendimento, a amizade crescida, aumentada, simples, de tudo nascida; tudo de que eu tanto precisava, de que de toda a vida precisei!, não me veio, não.
Não me tens amor, nem nunca mo tiveste. Sabes o que era amor, para mim? Era amor entendido, revelado de qualquer modo. E com o amor o gosto, a humana necessidade de vidas conjugadas.
Mas entre nós, infelizmente, nada, nada há de comum. Tu, para que eu bem entenda, não perdes ocasião do mo mostrar. Uma certa reserva aqui mesmo nesta casa, um procurar não ver e não saber, uma elegância convencional para dar o tom do amor desinteressado, um despegar e um afastar de toda a conversa simples acerca da tua vida e da minha… dizem-me mais do que eu queria saber.
Se soubesses quanto isso me tem magoado! Ofendido, mesmo.
Então seria eu pessoa tão banal e tão vil que te fosse massacrar com mesquinhas coisas particulares? Só se tu as procurasses saber, e assim era natural que quisesse ocupar as nossas escassas horas em mais amáveis conversas. Mas tudo me diz, só, como tens amado e como é inflexível a tua regra de amar. Coração, se o tens, é para te contentar com desgostos do intelecto. Não sabes o que é vergar, ser submisso e necessitado. És rijo. Temperamento e educação. E o teu grande cuidado é parecer e seres como queres parecer… Falas tanto das atitudes e aténs-te tanto aos olhos do mundo, à consciência do mundo!... E és tão pouco condescendente! Olhas-te a ti, nunca olhas os outros. E se pretendes reconhecer as tuas insuficiências, não é senão por gosto de consciência. Regala-te o espírito o castigo da pública denúncia. Mas não te melhoras… Oh! Não sofres! Não te satisfaz viveres como vives, mas o coração saciado, os sentidos satisfeitos, o tempo cheio, as criaturas mudáveis, vão-te entretendo. Não sofres! E és violento e concentrado! O teu gosto, tantas vezes, seria moer, torcer o mundo com essas mãos fracas que tanto gostas que te apreciem.
Tanto gostas que te apreciem! Quase o pedes, quase o exiges. E tão pouco generosos és… Os teus olhos que tão bem vêem fazem sempre que não vêem. Não sabes que as mulheres precisam e gostam também de ser apreciadas? Alguma coisa têm sempre que apreciar… A mulher, apreciada, sente uma vaidade que, quando não é exagerada, lhe dá mais graça. E um contentamento que anima e enfeita. E o homem que aprecia a mulher dá-lhe a entender que a ama.
Chamaste-me só uma vez pelo meu nome. Estranhei e tive gosto. Gostos simples, gostos naturais!, porque me serão tão regateados?
Lá longe, a esta hora em tua casa, talvez jantando, conversando, vagamente te lembrarás de mim. E se te lembrares não é com sobressalto, gosto, simpatia, coisa que ligue as vidas e os corações.
Às vezes arrependes-te, tens remorsos do teu “sadismo moral”. Que palavras! Porque as pensas!
É quase noite. Estou na casa pequenina, na casa de escrever. No outro dia assim mas baptizaram: casa de escrever e casa de ler.
Não tens um bocadinho de amizade a estas casas, nem a nada disto, pois não?
Eu sei que não. Mas pergunto só para me martirizar.
O rio, tão azul, chama-me os olhos. Tarde tão boa! Boa para os outros, para os que gozam passeando, rindo, falando.
Não tenho saudades de nada, de tempo nenhum, nem de lugares. Anseio só por viver, ainda… É febra, resto de vigor e é imaginação.

IRENE LISBOA – Solidão II – Col. Obras de Irene Lisboa, excerto de “Queixa” - Domingo, págs. 31/33- 2.ª edição 1999 - Editorial Presença

Imagem In: http://www.cm-arruda.pt/mil



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