LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XXII
63.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
LITANIA
No meu rio, que é o rio Douro, havia antigamente esturjões, ricos peixes, cujas ovas dão o caviar. Dão-no lá fora, onde se aproveitam. Em Portugal, nunca se aproveitaram. Do solho, em Portugal, só se comia a carne saborosa. Melhor que vitela – diziam os sibaritas.
É de crer que não abundassem, no rio Douro, os cobiçados solhos, peixes descomunais, que chegam a deitar cerca de cem quilos. Não valeria a pena fazer das suas ovas, como na Rússia, o célebre caviar. Mas, valia a pena pescá-los para comer, dar e vender. Pescador que pescasse um grande solho impava de satisfação. Com o bolso quente, imaginava-se rei dos pescadores.
O que se diz do solho do meu rio poderá dizer-se de outros rios – Tejo e Guadiana. Rios preferidos pelo solho, podem orgulhar-se de semelhante mercê. Os demais rios contentam-se com espécies de menos vulto. À vista do salmão, põe luminárias, em cada Primavera, o rio Minho.
Num ano de grande seca, agravada no curso do meu rio por imprevidência de quem manobra as represas, assim se disse, o solho foi surpreendido, no seu lendário sono, por olhos ávidos de pescador. Lá estava a dormir, como se diz que dorme, no fundo dos seus poços. De lá saiu para se pesar às arrobas e vender a retalho como rês em açougue. Foi um são-miguel de gente ribeirinha.
Ressentido de tal calamidade, terá o solho desistido de procurar o Douro? É de crer que sim. Qualquer espécie, ressabiada por mau trato, evita-o, desviando-se de sítios que considera fatais. É crível que o solho, escarmentado pela célebre estiagem e consequente extermínio, tenha deixado de procurar, para desova, o nosso rio Douro. Não se sabe se assim aconteceu ou se o solho esqueceu a afronta. Sabe-se lá! Em Portugal, ninguém faz caso da vida das espécies. Tanto se nos dá que morram como que vivam.
A enguia, a lampreia e o sável, mimo das pescarias tradicionais de Douro acima, zangam-se com ele por falta de aparelho, que lhes permita, ao nível das represas, a sua migração. Alguém se importa com esse ressentimento? Ninguém. Imagina-se que atrás do sável, da enguia e da lampreia, outras espécies virão, talvez sintéticas, substituir as naturais. Tempo virá em que o sável, a lampreia e a enguia sejam flores de retórica ou de faiança. Peixes naturais serão só os indígenas, o insípido barbo, a indolente boga e, vá lá, a saborosa muje.
Se fugirmos do rio para o monte, lamentaremos, de ano para ano, a escassez da caça. Ninguém vê uma lebre nem um coelho. Perdizes, que antigamente pejavam o cinto do caçarreta, contam-se hoje pelos dedos do caçador. Uma perdiz é um troféu, peça de caça que hoje se come, por milagre, será amanhã animal mitológico, parente do dragão, da hidra e do centauro.
A águia do Marão, farta de dar filhos ao museu dos bichos e ao jardim zoológico, morreu. Alguém se lembrou de repovoar o seu ninho de pedra? Dar sucessão à sua realeza? Ninguém. A águia do Marão é hoje um símile. É o espectro de António Cândido
No Gerês, o último tiro abateu o último cabrito. À divina serra falta esse nimbo. Se eu mandasse nas serras, tentaria aclimar, na serra do Gerês, o cabrito da Ilha da Madeira. Não há cabrito – montês na ilha da Madeira?
Não se previne, entre nós, a sumição das espécies. Só a raposa, fina como é, vai conseguindo escapar. Aprovou, com a sua assinatura, a arborização dos montes. Aí se refugia e de lá sai, pela calada da noite, para representar, às vezes sem comparsas, as fábulas de La Fontaine.
Morte às espécies, substituição de castas consagradas, ingratidão da vista e do paladar com a carne, a flor e o fruto que ontem os regalaram – é decreto que se vai cumprindo como preceito religioso.
Precisei de ir a Paris para encontrar, num restaurante do Bairro Latino, os famosos abrunhos da minha região. Os que ficaram por cá foram substituídos por ameixas pintadas à pistola, odres de água chilra com dez réis de açúcar. Pobres abrunhos extintos da minha região!
Não sabe o que é maçã do paraíso quem nunca provou o malápio do Douro. Mas, onde pára esse fruto abençoado? Pêro de inefável perfume e inefável gosto, não deixou um rebento para enxerto. Foi substituído pelo bravo de Esmolfe, bom pêro, mas, sem o nobre apuro do Malápio do Douro.
Já sabemos o que aconteceu à cereja da Penajóia, aquela cereja bical semelhante a lábios rubros. Trocaram-na pela tal cereja temporã francesa, dura como zagalotes de atirar ao porco bravo e ainda mais agra do que rabo de gato enfurecido.
Nas varandas de pau, aqui no Douro, aí por Junho, começavam a rebentar os cravos. Caíam à rua e subiam ao céu essas nódoas de cor e cheiro inebriantes. Cálices esguios, pétalas subtis, linhas harmoniosas, dignas da finura de pincel chinês, foram substituídas por linhas empanturradas. Cravos patifes, poemas satíricos, onde parais? Morreu a velha que os regava. Fora de algum quadro de Holbein ou barrica esquecida, ninguém os vê. Não há quem os veja em vaso rico. Aí, só há cravos bem comportados, mas, tão gordos, que não cabem no cálice.
As carvalhas, mães do crisântemo, eram elegantes. Os filhos, à força de bifes, vitaminas por atacado, não se podem mexer. Usam muleta.
Dos canteiros de ao pé da porta sumiu-se o serpol e a malva de cheiro. Não há um botão de oiro nem um malmequer. Vai havendo flores monstruosas, de nomes disparados por bacamarte latino.
O culto da violeta e o do girassol morreram. A própria rosa, rainha das flores, abdicou. Todos os dias aparece quem lhe roube o ceptro. Se alguma rosa-chá se atreve com uma jarra, mudam-lhe a cor natural com purpurina. Que horror…
Não se evita a morte das espécies, ninguém acode à agonia das castas. Na vinha, enche-se o lenço de malvasia grossa e de saudades da malvasia fina. Debalde se procura o bastardo, quinta-essência da uva tinta. À míngua de moscatel doirado, até as abelhas desertaram da vinha.
Esta ladainha tem o seu intuito. Dê-se o leitor ao cuidado de o perscrutar. Só assim o poderá absolver.
8 de Novembro de 1964.
João de Araújo Correia - PASSOS PERDIDOS – “Litania”, págs. 233/238, 1967, Portugália Editora - Lisboa
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