Chá com Letras Online: APENAS UMA LARANJA - LEITURAS DE FERNANDO NAMORA


LEITURAS DE FERNANDO NAMORA
61.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal


APENAS UMA LARANJA

Ainda hoje, quando volto ao cimo daquele penhasco, onde o homem desafiou as leis que o limitam para construir um ninho de águias e dele abranger o céu, as distância, a ambição e as vertigens, - ainda hoje prolongo o meu olhar pela planície e recordo as tardes em que a percorri sobre o lombo paciente de um cavalo, meu companheiro de filosofia e canseiras, ao apelo de camponeses bisonhos para quem a doença é acontecimento de solenidades e misérias. Lá ao fundo, reparem, quando a campina se esforça por trepar às vertentes da raia, como ondas que, apesar de fatigadas, ainda têm alma para surpreender as falésias, esconde-se um dos muitos casais que polvilham a árida solidão da charneca e que, com a sua presença triste, parece que tornam a solidão maior ainda. Conseguireis distinguir as pobres casas daquela monotonia de terra parda, de xisto, de árvores que um Outono infindável condenou a uma nudez também perpétua? Serão casas, perguntareis? Dizem que sim. Pelo menos, vivem lá homens. E anseios e desilusões e doenças – e sobretudo uma tenacidade que já não tem mérito porque se tornou um hábito ou talvez uma condenação.
Num dos Estios que por lá passei, uma epidemia de tifo correu a planície de lés a lés. Sem nada que a travasse, obrigou cada família a pagar-lhe um pesado tributo e em algumas casas fui encontrar dois ou três corpos estendidos sobre esteiras, alinhados, gemebundos, como se estivessem ali apenas à espera que alguém os lançasse numa vala. O tifo pressentia-se à distância. Começava por ser um odor até o sentirmos como uma presença. E depois de observar, por hábitos, sem convicção, deformado pela rotina, esses ventres escavados, esses rostos onde a febre, já nada mais tinha para devorar do que a ansiedade ardente nos olhos, sentei-me num cepo, ao ar livre, para que a largueza da atmosfera varresse de mim, das minhas mãos, do meu cérebro, o contágio informe e repulsivo. Mas o tifo insinuara-se na terra, no vento, nas árvores. Era como se todos, na campina, estivéssemos mergulhados no lodo. Que podia eu fazer de verdadeiramente útil àquela pobre comunidade de doentes? Donde viera a doença? Quem a alimentava? Que frágeis éramos todos! Em redor, havia apenas céu e planície. E, lá ao fundo, montanhas.
A que distância ficava o mundo, a saúde, os remédios e a força que sacudisse a podridão das pessoas e da terra para longe? A minha inutilidade, o desespero de me saber inútil, de ser tão débil como qualquer daqueles camponeses que me seguira até à rua – sabia-me agora a uma traição, eles eram frágeis e não o ocultavam. Mas eu, que mascarara a minha incapacidade com uma suficiência que os iludira, essa suficiência que os arrastava até mim para que eu lhes oferecesse uma palavra ou uma atitude de apoio – eu, que terrível farsa estaria ali a representar?
A minha angústia não lhes suportava a presença. Desejava que todos se fossem dali juntar-se aos moribundos. Que todos se fossem– para que, deixando-me só, me fizessem saber que também eles tinham compreendido que eu lhes insultara a sua credulidade.
Mas nada disso acontecia: os poucos homens e mulheres válidos do povoado avolumavam de instante para instante o cerco de expectativa estabelecido à minha volta. Eu era aquele de quem se esperava a palavra perigosa. Se negasse a ludibriá-los, o desamparo deles acabaria por ser definitivo. Ia então mentir-lhes. Ia acrescentar mais um disfarce aos muitos que até aí haviam mascarado a minha incapacidade.
E quando, enfim, os entorpeci com as esperanças, os conselhos, a solidariedade que de nada lhes valia, uma velhinha suja tirou do abismo das suas saias uma laranja e ofereceu-ma. Era a única coisa que eles possuíam para me traduzirem o seu reconhecimento. Apenas uma laranja – e tinha a significação de um tesoiro. Um tesoiro para compensar uma mentira.

Fernando Namora, RETALHOS DA VIDA DE UM MÉDICO – “Apenas uma laranja”, págs. 345/350 – segunda série, Editora ARCÁDIA limitada, 1963


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