LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XX
54.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
PEDRO SEM
Se não fosse ele, eu já tinha morrido… Ausculta-me, sempre que aí vem, diz que estou para lavar e durar, tira da maleta um frasco de comprimidos, que quer que eu os tome para manter o cérebro alerta e o coração desembaraçado. Certo é que o consegue – com os comprimidos ou com a visita, que é para mim uma festa. Uma festa? Sim, uma festa que se prolonga, de visita a visita, nos livros que me empresta para eu me entreter. Se não fosse o bom do médico, eu já tinha morrido.
Tinha morrido de solidão, de pasmo… Tinha morrido no meio dos esgares dos meus companheiros – sempre os mesmo esgares. O Bocage conta sempre as mesmas anedotas e, quando a Senhora Superiora não está presente, aí vem ele com as suas cantigas de taberna – com pimentos, bacalhau cru, queijo de cabra e muita vinhaça. O outro, o da rabeca, mói-me a paciência. Toca, desde que acorda até que adormece, uma coisa sem fim, a que chama Delírio ou Martírio. Mais próprio será Martírio… Põe-me os cabelos de pé, os meus últimos cabelos, que teimam em crescer sobre as minhas orelhas.
Quer a Senhora Superiora que apreciemos a música do Lavandisca, antigo moço de cego. Quer que o apreciemos, diz que não toca nada mal – o que é pena. Se tocasse mal, a ponto de nos enfurecer, deveríamos oferecer a Deus a nossa fúria, depois de a amordaçarmos bem amordaçada. Presa como um leão com uma corrente de oiro, seria um belo presente para Nosso Senhor, que logo a lançaria a nosso crédito para desconto dos nossos pecados.
Não compreendo a Senhora Superiora. Não quero julgá-la, porque não quero que ninguém me julgue a mim. Certo é porém que todos os dias nos lembra a nossa morte – o que é aborrecido. Chego a supor que se veste de Páscoa quando algum de nós sai porta fora, com os pés atados. Tinhas os dias cheios – deste o lugar a outro. É como diz, quando algum de nós estica o pernil, a Senhora Superiora.
Coitada, lá tem a sua ideia. Mas, não gosto de lhe ouvir dizer, sempre que o doutor me visita: vá lá, vá lá ver o seu doente que não tem doença nenhuma. E, que tivesse… Quem vem para estas casas, doutor, não vem para se tratar. Vem para morrer.
Certo é que não morro, não morrerei tão cedo, enquanto o doutor me visitar. Fazem-me bem os comprimidos que traz na maleta para me manter o cérebro alerta e o coração folgado. Fazem-me bem… Mas, de mim para mim, chego a supor que não eram precisos. O que me ampara é a curiosidade, a benevolência com que me escuta. Conto-lhe sempre a mesma história, ouve-ma sempre com igual atenção.
A minha história é simples. Resume-se na minha boa fé com o meu empregado – o Arsénio. Se não fosse a minha boa fé, seria eu o rico. Não estaria agora neste asilo, com os ouvidos atordoados pela música do Lavandisca e as histórias de taberna, contadas pelo Bocage. Não arreliaria com a minha presença a Senhora Superiora. Penso que a minha presença a incomoda quando lhe ouço dizer: doutor, quem vem para estas casas, não é para se tratar. É para morrer.
Se não fosse a minha boa fé, nunca eu receberia esta facada. Seria um lorde. Seria, como o fui em vida, morri desde que entrei aquela porta, comendador de facto e de direito. Seria o comendador Fortuna, boa fortuna, como no tempo em que dei esmolas de doido, supondo-me rico, a hospitais, asilos, bombeiros, escolas, meninos que quiseram ser doutores… Hoje, não me conhecem.
Demónios levem a minha boa fé. Confiei como cego no Arsénio, dei-lhe sociedade na loja, a melhor loja de secos e molhados da província, do Porto acima não havia outra, para ele me provar, com a conivência do guarda-livros que rico era ele. Mas, como? Entrou na minha casa de pé descalço. Não tinha, na terra donde veio para me servir como paquete, mais tarde é que foi marçano, leira nem beira donde lhe viesse um tostão. Como é que enriqueceu e eu empobreci? Não digo que me tenha roubado, que as paredes podem ouvir, santo nome, e eu posso ir parar à cadeia, à última hora, como difamador. Cautela… Quando me lembro do tribunal, ponho-me a tremer. Não é certo que ele se ficou a rir quando o levei à barra? Penso que tive razão em lhe fazer sentar o sim-senhor no mocho. Com que dinheiro tinha ele comprado casas e quintas lá na sua terra? Se vendia chibos sem ter cabras, as cabras eram minhas – pensava eu na minha santa ingenuidade. Pensei mal… cabras e chibos eram dele – como se provou no julgamento. Os lucros da cota que lhe dei multiplicaram-se à minha vista. Saí corrido como se fosse eu o roubador. Mas, dei graças a Deus, porque o meu sócio, embora eu me julgue empobrecido por ele, tinha bom coração. Pensou em me processar como caluniador, virando o feitiço contra o feiticeiro, mas, afinal, não me processou. Não teve topete para tanto. O filho dele, que é meu afilhado, pediu-lhe que não fizesse mal ao padrinho.
O rapaz deve-me a formatura. Dei-lhe o curso de engenharia no tempo em que me supunha mais rico do que o pai. Tencionava fazê-lo meu herdeiro, porque não tenho filhos. Minha mulher, que já lá está, nunca mos deu. Ninguém me poderia anular o testamento. Mas, testamento de quê? Quando me lembrei de testar, vi-me sem vintém – como se dizia antigamente.
Dizem-me que tenho no Brasil sobrinhos muito ricos. Terei… Mas, se o pai, meu irmão, que foi para o Brasil em pequeno, esqueceu a família, fariam caso de mim os meus sobrinhos? Que lhe escreva, que o sangue corre pelas veias… Que corra. Escrever, não escrevo… Não tenho família. Quem é a minha família? É o médico, é o bom doutor que me visita e me trata. Não quer que eu morra. Quer que eu viva lúcido, contente, sem sofrimento nenhum. Meteu-se-lhe esta na cabeça. Não será mais poeta ainda do que eu? Sim, que eu fui poeta, nunca fui merceeiro. Por isso me viraram as costas, colegas e vizinhos, quando me viram pobre. Disseram: que não fosse parvo. Fino foi o sócio. Esse, sim… Nunca se importou com letras nem com tretas. Nunca leu um livro, nunca se quis instruir. A instrução dele é apontar no borrão, com letra garrafal, o que lhe devem. Mas, em contas de cabeça, ninguém o atrapalha. Nunca teve outro fim senão enriquecer. É um balcão completo. O outro, que soube criar a maior casa comercial do Porto para cima, quando se viu rico, adormeceu. Tratou de dar sem tom nem som. Tratou de fazer bem à terra, como se a terra lho agradecesse. Forte burro… Foi parar ao asilo, ao passo que o outro, que se não desabrocha com um tostão, vive independente. Com dois riscos mal feitos num papel, levanta, em qualquer Banco, a massa que quiser.
Fui, em vida, o Fortuna. Agora, que morri, sou o Pedro Sem. É o nome que me dá por aí essa gente. O rapaz lanzudo, que vai às compras, cá no asilo – faz-me lembrar o Arsénio, quando veio servir, de pé descalço, para minha casa -, pensa que não tenho outro nome. Chama-me Senhor Sem. Traz da rua o nome que mereço. Pedro Sem… Que outro nome compete a quem teve e não tem?
Dizem-me que há agora, no Porto e em Lisboa, uns recolhimentos muito asseados para antigos caixeiros e antigos patrões empobrecidos. Já me lembraram que poderia ir para lá… Não quero… Se eu levasse o meu médico… Mas, nem assim. Da janela do meu dormitório, virado ao Sul, sempre vejo o meu rio, que corre por entre montes cobertos de vinha. É a paisagem da minha infância… Quero morrer com os olhos nela. Quero ouvir também, até à última, vozes que passam no caminho estreito, que abraça o asilo por dois lados – o do Norte e o do Poente. São vozes rudes, mas, são as da minha gente, com quem me criei e donde saí comendador. Parece que escarnecem de mim. No entanto, quero ouvi-las até à última. Não saio deste asilo. Daqui irei para o cemitério, que fica perto.
João de Araújo Correia – RIO MORTO – “Pedro Sem”. Págs. 53/58 Imprensa do Douro Editora, 1973
Imagem In: http://regisbone.blogspot.com/2010/10/atraves-da-janela.html
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