Chá com Letras Online: O VINHO - LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XVIII


LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XVIII
52.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal


O VINHO


NAQUELE domingo, à tarde, o João da Mó não pôde sair de casa para se emborrachar na taberna como costumava. A mulher tinha-o fechado à chave e largara, com o chale preto no braço, lá para onde tinha determinado ir. Deixara-o adormecido como um prego no fundo de uma sesta dominical e fora à sua vida – aquela mulher ligeira e branca. Para onde tinha ido?
A primeira coisa que o João sentiu, quando acordou, foi sede. Tinha comido carne ao jantar e não estava afeito. Aquecia-lhe o bucho. Precisava de água, ma apetecia-lhe mais o vinho. Circunvagou os olhos pela quadra que lhe servia de quarto, sala de jantar, cozinha e tudo. Não vendo a mulher, pôs-se a berrar por ela com a voz mais seca do que palhas.
- Ó Ingelina! Ó Ingelina!
Os vizinhos de paredes meias ouviram-no e começaram a rir. Não só se riram como disseram bem alto:
. A Ingelina? Vai procurá-la aos Entre-Matos. Meteu para lá mais leve que uma levandisca. Vai ver se a atopas, João, e dá-lhe com o sacho. Mói-a bem moída!
Embora lhe falassem alto… Ele não ouvia. Só escutava os berros do bucho sequioso. Conversava com ele.
- Quero binho!
- Acomoda-te, que eu bem sei onde o há bô e barato.
Pensado em vinho, ergueu-se da cama em ceroulas e foi à porta espreitar, ver que a mulher não estivesse por lá no quelho de servidão entretida ao paleio sem fazer caso do chamo. Deu porém com o nariz na porta. Estava fechada. E a chave? Que é dela? O buraco reluzia como um rombo. A língua, grossa como dois dedos, parecia ter escrito: não sais.
- Não saio daqui hoje?, pensou o João a tremer e a choramingar. – Saio…
Foi até À janela, subiu a guilhotina, debruçou-se no peitoril e berrou para a calçada:
- Ó Ingelina!
De tanto berrar, nas arestas da garganta seca ficava-lhe a palavra cortada pelo rabo.
- Ó Ingeli!
Nada. Subiam e desciam a calçada os tímidos namoros, velhas que iam à bênção, lavradores graves, fidalgotes de colarinho branco, a gente do costume em tarde de domingo. Ninguém dava relação da Ingelina. Todos os transeuntes porém se riam à socapa dos berros do João. Riam e seguiam caminho. Alguns diziam baixinho:
- A Ingelina? Tenho-a aqui no bolso…
Outros, mais maliciosos, murmuravam:
- A Ingelina? Olha vai perguntar ao Abana-Miolos. Esse é que sabe onde a terá escondida a esta santa hora.
Até que passou na rua, subindo ou descendo o homem mais alto da freguesia, o Trancão – homem que tinha o coração na boca.
- Vossemecê quer a sua Angelina? Venha cá fora procura-la à rua. Venha cá fora, tio João. Vossemecê é um desgraçado.
- Como hei-de eu sair, meu amigo Trancão, se aquela mulher… Fechou-me? Em dia tão claro, estou aqui mais negro do que essa gurbata que vossemecê traz ao pescoço por alma da sua mulher, meu amigo Trancão! A minha – ninguém o há-de acuarditar - fechou-me!
- Ah! Isso tem remédio, meu homem! deixe-se cair, que eu amparo-o… Graças a Deus, sou alto. Chego à sua janela. Ora, vá! Deixe-se cair. O que a sua mulher precisa é de uma grande coça. Vossemecê é um desgraçado. Deixe-se cair…
- Ó Ingelina! Ó Ingelina! Anda cá, que até o senhor Trancão tem pena de mim!
- Ora, vá! Deixe-se cair!
- Ó Ingelina! Anda cá, que até o senhor Trancão quer que eu caia em riba dele, em términos de o aleijar, Ingelina!
O senhor Trancão desandou, rua abaixo ou rua acima, rilhando palavras duras a respeito do João e cuspindo uma palavra aguda, em u, a respeito da Ingelina.
- Tens medo de a quebrar? Em breve te nascia outra!
- Meu amigo Trancão, muito aguardecido. Ó Ingelina!
Ia a tarde no fim. Do alto da janela à rua, pendiam os braços do João da Mó. Os braços e a língua… Sem forças para berrar, cuspinhava apenas, babava-se, choramingava, limpava os cantos dos olhos aos punhos da camisa. Como quem arranca a alma, vingava às vezes um murmúrio para um passante:
- Vossemecê num biu a minha Ingelina?
Ora lhe respondiam bem, ora lhe respondiam mal. Quem melhor o percebeu e lhe falou à letra, entrando-lhe no coração, foi o Chico pastor, homem baixinho, mas, esperto como um covil de raposas.
- Aposto que vossemecê, em toda a santa tarde, ainda não bebeu uma pinga!
- Ah! Chico! Tenho a língua assada! Se tu soubesses, Chico! Estou aqui fechado!
- Ah! Tio João! Deite-se daí abaixo. Caia nos bicos dos pés e agache-se… Dê ária ao corpo, olhe, faça como eu! Salte daí, que eu mato-lhe a sede.
O tio João vestiu as calças à pressa e saltou à rua com arte. De braço dado com o companheiro, entrou na taberna e embebedou-se de caixão à cova. Foi preciso levarem-no a casa à caldeirinha. Veio abrir-lhe a porta a Angelina, muito dissimulada. Vendo-o naquele estado, perguntou:
- Como foi que deste com a chave, filho? Como havias tu de dar com ela, se eu a tinha levado por esquecimento, filho?
Assoou-o como se ele fosse uma criança ranhosa. Meteu-o na cama com muito carinho. Cantou-lhe, por cantar, que ele não precisava. Para continuar dormido como um prego, bastava-lhe o vinho. Só acordou segunda-feira à noite – já a mulher tinha ceado. Acordou com o barulho que ela fazia a lavar a loiça.
João de Araújo Correia - TERRA INGRATA – (contos e novelas), “O Vinho” – págs. 19/24 , Portugália Editora - 1946

Imagem in: https://arturpastor.tumblr.com/search/tr%C3%A1s+os+montes




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