Chá com Letras Online: O TIO NATAL - LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XIX


LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XIX
53.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal


O TIO NATAL


Será esta a última vez que o meu patrão, sentado ali no preguiceiro, com os pés para o lume, se ria da minha sombra. É um homem sério, mas, nunca deixou de ser criança. Diz que a minha sombra, consoante a labareda sobe, também ela vai, pela parede acima, como vide estendida ou retorcida nas mãos do erguedor.
Sou magro como a vara de uma cepa. Mas, apesar de magro, cheguei a esta idade. Faço hoje, pelas minhas contas, assentes no livro do meu patrão, os meus noventa e três anos. Já é…
Este ano, que tristeza, pouco terá de se rir o meu patrão com a fuga da minha sombra por aí acima. É que a fogueira, este ano, é muito mais pequena. Mal se compara com a dos outros anos. Diz a minha ama, cheia de raiva, embora seja certo, que não há quem corte um pinheiro nem mulheres que acartem um molho de chamiça. O pessoal fugiu para França e Alemanha. Por lá anda…
Se me demoro por aqui mais tempo, hei-de ver nesta cozinha um fogão de gás ou tocado a electricidade. Minha ama, que tem tantas matas, não tem, a modo de dizer, com que acender o lume. Tanto, que já disse ao homem: ou me compras isso ou eu e a moça deixamos de cozinhar. Vê lá…
Mas, o meu patrão, que já está velho, embora seja mais novo do que eu, responde-lhe assim: deixa lá mulher. Podes acreditar que a lenha, embora pouca, há-de chegar para nós. Quando a não virmos, ao canto da laffreira, para fazer o caldo e cozer umas batatas, com um cibo de bacalhau, já não é precisa. No Purgatório, para onde iremos, não hão-de faltar brasas. Que dizes à minha ideia?
O meu amo, que é homem conformado, acomoda-se com o que tem e com o que não tem. Em noite de Natal como esta que vai caindo, com um frio de morte no telhado, contenta-se com uma fogueirinha, que mal se tem em pé com duas murras de lódo e aí meia dúzia de tábuas velhas, cortadas com o meu cutelo, que já foi cutelo. Tem hoje mais bocas do que fio.
Minha ama é que se não conforma. Foi sempre uma rezinga, cala-te boca, levada do diabo. Já me disse a mim: ou ele me compra o tal fogão moderno ou os dentes desta casa, os poucos dentes que por aqui há, criam ferrugem. Vossemecê, Tio Natal, pode procurar vida, se é que ainda tem vida a procurar. Quer ir para o asilo?
Bom asilo é o meu, enquanto aquele velho, que ali está sentado, naquele preguiceiro, continuar meu patrão. Sustenta-me a mim, que mal pude amanhar, com o meu cutelo, cheio de bocas, as tábuas carunchosas, que aqui se despendem do mundo tão alegres como se fossem para uma festa. Não deitam uma lumieira por aí além. Mas, ainda assim… Pena é que me não levem a sombra, como as fogueiras antigas, pela parede arriba até à chaminé. Só para o velho se rir…
Porque é que o meu patrão me protege? Porque o vi nascer, andei com ele ao colo, ensinei-o a caçar coelhos e o ajudei, como feitor, a granjear as terras. Quantas a minha ama, que fumega por dá cá aquela palha, não me pode ver, porque a não conheci de pequenina. Veio de fora, dos lados do Porto, casada com aquele santo para o arreliar com mil esquisitices. Nunca gostei dela nem ela de mim. Diz que não gosta de tropeços e que os seus potes, por enquanto, nenhum precisa de calço. Graças a Deus, ainda têm pernas que os aguentem. Se fossem à inspecção, ficavam apurados. Deitavam as correias, que se consolavam. Ai, minha ama, minha ama…
Nasci pelo Natal – em noite como esta. Mas, decerto mais fria do que esta, porque apareci, meio gelado, à porta desta casa. Isto, no tempo que havia enjeitados. Hoje, não há nenhum. Quer me parecer que as mães envergonhadas desfazem as vergonhas antes de vir à luz. Lá se avenham…
Futurou-se que o pai de meu amo, grande femeeiro, fosse o meu paizinho. Não era… Mas, nem assim me negou a criação. Pôs-me numa ama, em Sedielos, e pediu a toda a gente que me chamasse Natal. Não me baptizou, porque, dizia um papelucho colado à minha baeta: já tem os santos óleos e chama-se Manuel.
Mais dizia o papelucho que nasci longe daqui e que um dia seria procurado. Para me conhecerem, bastaria uma estrela, um sinal que Deus me pôs na testa para me não perder. Toda a gente me chama Tio Natal, e, apontando com receio para a minha estrela, toda a gente diz: é a estrelinha que guiou os Reis Magos.
Há quem diga que sou irmão do meu amo, que ali está sentado, naquele preguiceiro, e, de vez em quando, se põe a olhar para mim como se eu fosse o tempo ido. Cisma, como eu, nos dias findos. Mas, não é meu irmão. Se fosse meu irmão, como por aí se diz à toa, não era homem que me negasse a irmandade. Eu sou de longe, sou desse mundo de Cristo… Sou a pobreza, a infelicidade, a fome e a sede dos caminhos. Se me topassem, para me reconhecer, fariam de mim riqueza e davam-me outro nome. Ainda bem… Se me tivessem topado, não haveria por estas redondezas, durante noventa anos, uma figura de homem franzino, com uma estrela poisada na cabeça, chamado Tio Natal. Mas, vou-me embora. Não passo desta noite, que eu bem o sinto. Patrão, o que é que tem? Não olhe para mim desconfiado. Isto, que vê em mim, pela primeira vez, não vale uma choina da lareira. É a morte que vem ter comigo. São horas de lhe dizer adeus, patrão da minha alma, único amigo de toda a minha vida. Esteja quedo, aí no preguiceiro.
Não se alevante, indas que me veja cair em cima do borralho. Deixe-me arder…
Amigo de todos os dias, que Deus deita ao mundo, em toda a roda do ano, só ele… Toda a gente se lembra do Natal, toda a gente me confunde com o Natal, toda a gente se ri comigo, sem se atrever a rir da minha estrela, mas, é só esta noite. Depois, Tio Natal, não passas de um pobre às sopas de um patrão.
Quer-me parecer que amanhã, quando eu for cinza, guardada na pilheira, nem nesta noite se lembram de mim. O Natal, que amolecia as criaturas de ano a ano, debaixo da farpela do lobo ou do milhafre, vai acabar.
Dentro desta cozinha, se não fosse a triste rabanada, que a minha ama fritou naquele tacho, tome lá, Tio Natal, para conhecer a sua noite, que diabo de Natal seria este?
Nem filho nem neto do meu amo aqui apareceram. Mandaram dinheiro, mandaram não sei o quê para os dois velhos, até a mim me mandaram esta roupa, mas, vir é que não vieram. Dizem as senhoras, noras de meu amo, que a noite de Natal é uma fantasia que já se não usa. Sofrem, quando muito, o dia de Natal, com o pirum regado de champanha. Bebem-lhe bem…
Tenho soidades do tempo em que os meninos, ali naquela mesa, depois da ceia, jogavam o rapa com pinhões de pinhas que eu abria na pedra da lareira. Hoje, por desfastio, ainda o jogariam. Mas, os meninos de agora, netos do meu amo, já uns homenzinhos, não sabem o que é um rapa nem nunca viram o que se diz um pinhão. Quando por aqui abordam, em dois dias de férias, fazem-me caretas a essas velharias, se acontece eu gabar-lhas para os atrair à noite de Consoada. Puxam-me pelas suíças, que sempre usei, embora mal tratadas, e chamam-me Senhor Natal.
- Porque é que lhe chamam tio se você não é tio de ninguém?
- Tanto me chamam tio como até me tratam por vossemecê. São coisas que os meninos não entendem.
As noras do meu amo ainda aqui vieram consoar no outro ano. Com caras de nó cego, fizeram motetes a todas as comidas. Por pouco, não escupiam nos pratos. Mas, beber, sempre beberam. Quando se levantaram, para ir à deita, já não iam muito firmes nas panelas. Digo panelas, porque, Deus me perdoe, todas vestidas de homem, não tinham pejo de rebolar o rabo. Era cada um, que nem a barriga de uma talha comprada em Bisalhães. Ou como aquele paio, que ali ficou esquecido, naquele prego, desde o tempo das favas…
Cristo! Ao que se chegou… Mas, ainda bem, que mais adiante não chego. Esta noite, que foi santa, é agora uma noite morta. Se não fosse a triste rabanada, que ali a minha ama, hoje mais macia, me deu a comer, com um cális de vinho velho, que noite de Natal era esta?
É pena que o Natal, bonito como era, vá acabando de vez. Sempre era uma noite em que até os marotos se vestiam de santidade. Fingida ou verdadeira, era santidade. Era não sei o quê, era o ar da noite abençoada, que lhes dava o rosto. Noite sem peçonha…
Mas, já nem sei o que eu tenho estado a sonhar… Onde ia eu? Ah! Patrão, não se levante. Nem saia do seu poiso, se eu cair sobre as brasas. Cuido que perdi o tino. Onde estou eu? Quem seria o meu pai?

João de Araújo Correia – RIO MORTO – “O Tio Natal”. Págs. 91/97, Imprensa do Douro Editora, 1973

Imagem In: https://www.artmajeur.com/.../artw.../5973001/panela-ao-lume


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