Chá com Letras Online: MAGALHÃES LEMOS - LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XVII


LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XVII
50.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal

À memória do dr. Magalhães Lemos e de Júlio Guedes


MAGALHÃES LEMOS

DAVA-NOS as lições magistrais e apresentava-nos doentes típicos no salão nobre do Conde Ferreira. Também ali reunia, presidida por ele, o conselho de psiquiatria forense – exame às faculdades mentais de criminosos. Nós, para aprender, assistíamos às reuniões. Passavam, pelos nossos olhos, soldados desertores, criadas envenenadoras, uxoricidas, criminosos tais, que só o pathos, bem averiguado, explicaria. Magalhães Lemos, condoído de todos, escabichava o pathos. No fim de cada sessão, nunca se esquecia de perguntar se o examinado tinha tatuagem.
- Tem alguma tatuagem, Magalhães?
Esta pergunta, no fim de cada exame, era fatal. Magalhães era o Dr. José de Magalhães, braço direito do mestre no Hospital do Conde Ferreira.
- Tem alguma tatuagem, Magalhães?
Suma importância tinha a tatuagem. Homem tatuado, homem degenerado?
As lições magistrais foram o prelúdio da nossa prática hospitalar, dirigida, nas enfermarias, pelo Dr. Baía Júnior. Assistíamos a essas lições como se assistíssemos a belas conferências. O professor representava-as, não as proferia. Se é certo que o pensamento precisa de imagens para se lhes poder agarrar, o nosso lente não no-las poupava. Servia-se de imagens, de gestos e, sobretudo, de mímica. Também o auxiliava a inflexão verbal, onde, aqui e além, cada um de nós podia ver grandes pontos de admiração. A mulher… tinha uma grande barba!
Actor consumado. Mas, alto aí, sem vislumbre de charlatanismo… Actor e autor que executasse o duplo papel com redobrada consciência. De tal maneira o executava, que nenhuma das suas lições, até hoje, pode ter esquecido ao menos memorial dos seus discípulos. Só um homem do povo, como ele parecia a explicar, só um homem do povo, com as suas comparações tiradas da natureza, o verbo quente, os ademares e esgares esculturais, podia atravessar como ele, desembaraçado e profícuo, a mais dura meninge dum ouvinte. Belas conferências! Citava os autores, adjectivando-os ou sublinhando-os como se quisessem inculcar o grau de admiração ou estima que lhe mereciam. Magnan era o grande Magnan. Babinsky era o Babinsky. Júlio de Matos, já falecido, fora o amigo e companheiro. Evocava-o familiarmente. O Júlio de Matos, coitado, dizia…
Apresentava os doentes, cativando-os com o palavreado.
- Está aqui este rapaz, muito bom rapaz, bom empregado, toda a gente que o conhece é amiga dele… Mas, ultimamente… deu em gostar da pinguinha! Confirmas isto, rapaz?
O rapaz, que teria os seus cinquenta anos, respondia afoito: confirmo.
Fora do salão, a mesma vivacidade sã. Caso o Magalhães, seu adjunto, empurrasse delicadamente a porta do seu gabinete, mandava-o entrar como se manda entrar a amizade em pessoa.
- Entra Magalhães!
Se o Magalhães viesse do Brasil, não o mandaria entrar com maior júbilo…
- Entra, Magalhães!
Pegava num molho de chaves e ia pelo corredor adiante, caminho das enfermarias. Como era surdo, experimentava o ouvido, tocando com a ponta das chaves, aqui e além, no abundante granito de socos e janelas. Acto contínuo a esta brincadeira, fazia com os lábios um pequeno trejeito como se quisesse dizer:
- É agradável ouvir alguma coisa.
Mandava sair da cela um doente mau, sujeito à camisa de forças por via dos impulsos. Apresentava-lhe um aluno, perguntando-lhe, com bom modo, se lhe agradaria recebê-lo uma vez por outra. O doente, velhaco, respondia torto:
- Sou muito surdo! Não ouço nada!
O mestre percebia-o pelo mexer dos beiços. Murmurava:
- Sempre insolente, sempre insolente…
Doente sossegado, com algum pecúlio ou algum resíduo de compreensão, via no médico baixinho, enfarinhado como um moleiro, um homem-de-virtude capaz de se baixar a uma oferenda.
- Se vossemecê me curar, dou-lhe um cabrito…
Outro encarava-o como divindade isenta, luminosa e benfazeja. Tinha no quarto o retrato do professor colado na parede.
- Tens aí um bom maroto, dizia-lhe um estudante.
- Não, por este não vem mal ao mundo…
Apesar de surdo, o professor Magalhães Lemos percebia o mundo físico e moral. Reduzia os olhos a duas fendas chinesas para escutar. Nos exames, se o aluno, mal preparado, quisesse abusar da sua surdez, não o conseguia. As duas fendas chinesas apuravam-se como objectivas de microscópio Zeiss. O aluno falava, falava, falava… O mestre, moita. Deixava-o falar até que dizia:
- Parece-me que isso… está um pouco… atrapalhado!
Cauteloso, cortês e… exclamativo. Atra-pa-lha-do!
Verbo pitoresco, vindo de Felgueiras, do torrão natal. Verbo antigo, mas ainda lustroso do roçar das leivas. Ao explicar a pelagra, chamava ao milho… milhão.
Quem visse na rua o professor Magalhães Lemos diria: vai ali um rico. É que usava peliça, guarda-chuva de seda, barba esculpida a preceito, cachucho, conforto. Parecia brasileiro.
Rico era de bens materiais e espirituais., mas não os ostentava como parvajola. Assentavam-lhe no pêlo como luva inata. Não tinha automóvel como, hoje em dia, quem fede de rico com barriga a dar horas. E trabalhava… Morava defronte do Hospital, mas vivia no Hospital, no gabinete, na enfermaria e no salão nobre, iniciando os rapazes numa ciência que poucos apreciavam: a Psiquiatria.
Quanto coração… Se, a qualquer hora da noite, entrasse em agonia um velho hóspede do manicómio, sem família cá fora que ainda o conhecesse, sem a mínima luz dentro do crânio, ex-homem ou homem que nunca tivesse sido, o professor Magalhães Lemos não arredava pé. Assistia-lhe ao trespasse até ao último sopro.
Tinha o seu quê de santo o professor Magalhães Lemos.
Dezembro – 1955
João de Araújo Correia, MANTA DE FARRAPOS – “Magalhães Lemos”, págs. 21/27 – 1962, Imprensa do Douro, Editora

Fotografia: António de Sousa Magalhães e Lemos, 1855-1931
Neurologista, psiquiatra e professor universitário
Imagem In: Página Web da Universidade do Porto




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