Chá com Letras Online: CAMILO FABULOSO - LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XIV



LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA XIV
48.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal

CAMILO FABULOSO

NUMA das tardes do último Verão, encontrei no Porto, mais ou menos a meio da antiga rua de Malmerendas, a senhora D. Flora Castelo Branco, neta de Camilo e avó de uma gentil menina, estudante de Direito, que a acompanhava.
Anos atrás, foi na Rua Formosa que eu encontrei a senhora D. Flora. Quer dizer, para quem conhece o Porto, que o ponto de reunião da minha pessoa com a descendente do romancista se desviou para Norte uns tantos metros. A latitude subiu… Mas, o meridiano deve ter sido o mesmo. Está escrito que eu veja a senhora D. Flora em Malmerendas ou nas mediações de Malmerendas. Como é fatal ser Camilo o assunto da nossa conversa.
Na primeira entrevista, disse-me D. Flora que conheceu o Avô em pequenina. Ia a casa dele, em São Miguel de Seide, e o Avô fazia-lhe muita festa. Dava-lhe mimo para a cativar. E, quando tomava chá, queria que a netinha tomasse chá com ele…
- Tomava chá? Pensei que fosse café…
- Não, quando eu o conheci, tomava chá e gostava muito de chá.
Na segunda entrevista, perguntou-me a senhora D. Flora se eu já tinha ido a São Miguel de Seide, ver o museu, depois do último restauro. Disse-lhe que não, que fui lá uma vez, há muitos anos, e que nunca mais voltei.
- Fui eu lá, e fiquei horrorizada. Eu, que conheci aquilo, não o reconheci. Aquilo não é a casa de Camilo… em nada! Nem nos aposentos, nem no que lá está… Vi ali muita coisa, que não pertenceu a Camilo, e falta ali muita coisa, que lá devia estar. Se ainda há gente viva, que, como eu, conheceu a casa de Camilo, porque a não consultaram?
Concordei com a senhora. Devia ser consultada quando se reorganizou o Museu. Ela e outras pessoas, principalmente a mãe de D. Flora, que morreu há pouco tempo e foi memória viva dos últimos anos de escritor, passados em São Miguel de Seide. Ouvi-a eu, à senhora D. Ana, em casa do seu neto José, na Régua, contar minùciosamente factos que precederam o suicídio. Pasmei da meticulosidade da octogenária. Porque a não ouviram? É crível que o não fizessem. Por questão de vaidade ou por questão de pressa, desprezam-se hoje muito os documentos escritos e os de carne e osso.
Desde a morte de Camilo, em 1890, até à morte de D. Ana Plácido, em 1895, D. Flora continuou por Seide, visitando a Avó, isto é, firmando o conhecimento da casa de Camilo. Porque a não consultaram?
Também D. Flora se queixou de fantasias que correm impressas à conta do Avô.
- Essas fantasias, obtemperei, previu-as ele… Disse que os prelos, depois da sua morte, se haviam de entreter, mentindo, a seu respeito. Como de facto… Mas, que importa isso? O génio de Camilo resiste a tudo que lhe queiram fazer.
Avó e neta olharam para mim e sorriram como satisfeitas da minha espécie de consolação. Despedi-me de ambas, prometendo a mim mesmo voltar um dia a São Miguel de Seide. Quando ali fui, em estudante, a Casa de Camilo, restaurada pela primeira vez, deu-me a sensação do ninho de açor camiliano, principalmente o quarto do plumitivo, com uma prateleira pregada na parede, para ter livros e papel ao alcance da mão, quando escrevia na cama, e o grande escritório, com uma fila de janelas sobre os campos verdes e os cerros azuis longínquos – o país camiliano.
Se não encontrar em São Miguel de Seide o que lá vi, em estudante, ficarei desolado, como a senhora D. Flora. Mas, consolar-me-ei, repetindo: o génio de Camilo resistirá a tudo.
Se resistiu a si próprio, mentindo às vezes como um cesto roto, melhor resistirá a quem o imagine ou sonhe, querendo interpretá-lo… Não houve quem dissesse que Shakespeare não existiu? Quando, daqui a alguns anos, alguém afirmar que não houve Camilo, nem meio Camilo, provarão as suas obras que existiu o génio camiliano.
Outubro – 1957
João de Araújo Correia, MANTA DE FARRAPOS – “Camilo fabuloso”, págs. 105/109 – 1962, Imprensa do Douro, Editora

Casa Camilo: http://www.camilocastelobranco.org/index2.php


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