Chá com Letras Online: O JUIZ SUBSTITUTO - LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA VIII



42.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal

O JUIZ SUBSTITUTO

ENTRE a primeira e a segunda guerra, ainda por aqui aparecia. Lembro-me de o ver muitas vezes, lá em baixo, na tortuosa rua das Falachas.
Era homem sobre o grosso, vestido de claro, e tinha os olhos castanhos. Caminhava direito, mas, meneava um pouco a cabeça como cavalo que quisesse impor à humanidade uma atitude nobre.
Tinha o crânio arredondado e a face lambida, quase sem feições. Lembrava, do pescoço para cima, uma pedra de bater sola. Por isso lhe chamavam, de alcunha, o Dr. Rebolo.
Nos dias vulgares, era conservador do registo predial. Era um burocrata. Passaria despercebido, se não fosse aquele teimoso meneio de cabeça, precursor de sinistra quietude em dias mais solenes.
Eram aqueles em que funcionava como juiz substituto. Nesses dias, não meneava a cabeça. Acomodava-a numa postura hirta de romano.
Dizia o povo, em seu imaginoso discorrer, que o pobre Dr. Rebolo, em dias de audiência, amanhecia de toga.
Com ela, é modo de dizer, percorria a vila, desde a estação, onde se apeava do comboio de cima, vindo da sua quinta, até o tribunal.
Fora do comboio, invocava a sua qualidade de juiz para sair da gare primeiro que ninguém. Queria o trânsito livre… Olhava com sobranceria a mó de gente que desembarcara – proprietários, regateiras de fruta, padres mal escovados e alguma senhora de chapéu e mantilha.
Se havia pobre que se desviasse dele com respeito, não faziam caso dele regateiras e proprietários. Senhoras, então, sorriam com desdém de tanto orgulho.
Fora da estação, deitava o rabo do olho a tanto malcriado. Gostaria de os ensinar, condenando-os a prisão e multa- na sua qualidade de juiz.
Nessa qualidade, pegava-se com transeuntes descuidados, que se não arredavam dele nos passeios, nem sequer faziam o gesto de levar a mão ao chapéu. Envergonhava-os com reprimendas.
No barbeiro, aonde entrava para se escanhoar a preceito, queria ser servido sem esperar vez - na sua qualidade de juiz.
Concordava com ele a freguesia, dando-lhe a preferência. Mas, já aviado, porta fora, com pó de arroz na face e no cachaço, ai dele! Era autopsiado em vida, e em imagem, na barbearia.
Quem mais cortava nele eram os bons fregueses, gente do comércio, propriedade, pequeno capital… Fregueses pobres calavam.
Mas, os outros, os independentes, jarretavam sem dor as carnes sucadas do Dr. Rebolo. Dava-lhes uma ajuda o mestre, como quem não quer a coisa, em ponto mais melindroso, com uma tesourada subtil e certa.
Ficava-se a saber quem era o figurão.
- É burro como um soco.
- Se não fossem os empenhos, não conseguia a formatura.
- Se não fosse a formatura, não conseguia o casamento. Só aquela quinta!
- Pobre senhora… É linda e inteligente. Mas, que cruz! Atura-lhe o que Deus sabe. Não vê um tostão. O gajo é um unhas de fome. Deixou morrer uma filha à mingua de tratamento.
- Mas, quem o ouve não lhe bate. Faz cada discurso! Para provar, na sua qualidade de juiz, que é um homem de bem em toda a acepção da palavra.
- O pior é que o homem de bem, ao fazer das contas, não as paga…
- Pagar, paga, mas, tarde, mal e porcamente. Prova, por a mais b na sua qualidade de juiz, que não encomendou tanto sulfato. Quem diz sulfato, diz cal e diz arroz. Fica-lhe barato o granjeio da propriedade.
- Quem será hoje a vítima? É dia perigoso, alguém há-de ser.
- A vítima, hoje, é o ferrageiro. Vendeu-lhe, para surribas, muita pá e ferro. Pobre homem!
- Pobre também de quem hoje se sentar no mocho. Se for pessoa com que embirre, porque lhe feriu a vaidade, leva uma boa porrada.
Com estes lugares-comuns, feitos navalhas, desmanchavam o Dr. Rebolo, peça por peça, como se faz a uma ceva tirada do chambaril.
Bem se importava ele! Eufórico, cheio de embófia e de chorume, entrava no tribunal como num templo.
Da última vez que ali foi, na sua qualidade de juiz, teve de se haver com um réu arguto, melífluo, dissimulado, o Fuzil! Homem que envelhecera na prática de pequenas burlas, pequenos furtos, medíocres assaltos – para não trabalhar. Usava a barba toda, mas, rala, já branca e espetada à sovela na face e no pescoço. Tipo enxovalhado, mas lúcido, como se vivesse do intelecto sem fazer caso do corpo. Fechava um olho para melhor ver e analisar com o outro. Falava doce e sorridente. Mas, sorria só com meio lábio… Era um aristocrata.
Acusavam-no de ter roubado galinhas. O Juiz, lembrando-se das suas, e do preço por que estava o milho, resolveu aplicar-lhe a pena máxima. De mais a mais, embirrava com o bom modo do réu. Não lhe reconhecia o direito de falar e de sorrir como lorde.
Antes de proferir sentença, como de costume, fez um belo discurso. Tão belo, que ele próprio se extasiou, ouvindo-o… Saíam-lhe as palavras como nozes, reboludas e sãs, umas atrás de outras. Uma formosura!
Enaltecia-se a si próprio, ungia-se de autoridade moral para condenar o arguido. Roubar era roubar. Roubar galinhas, pela calada da noite, com arrombamento, era crime grave. Roubar aves tão úteis, estando o milho caro, era crime nefando. Lamentava que a Lei, não tendo previsto a carestia da vida, lhe manietasse as mãos de julgador. Condenaria o réu, se pudesse, a penitenciária e degredo.
Como, a modo de dizer, no fim de cada período, empregasse o estribilho favorito, na minha qualidade de juiz, o réu, do seu banco, piscando o seu olho melífluo, murmurara: Substituto…
Este substituto, dito pelo Fuzil, é indefinível. Apenas se pode descrever o efeito que produziu no tribunal. Desconjuntou-o, pelas cadeiras, em barrigadas de riso. Crê-se que a própria figura da Justiça, pintada a escaiola, por detrás do cadeirão curul, de tanto rir, deixou cair a balança.
O réu foi condenado. Mas, o Juiz pôs ramo no ofício. Não resistiu ao enxovalho. Naquele dia, ao ir para a estação, até os pardais, que tinham espreitado a audiência, lhe assobiaram ao rabo o inefável insulto: substituto…
Reformou-se em boa hora. Trocou a vara de juiz pelo sacho de lavrador. Mas, quando o arvora, diante do cavador, no meio da sua quinta, faz tremer de receio cepas e oliveiras.
JOÂO DE ARAÚJO CORREIA - Folhas de xisto – “O Juiz substituto”, págs. 179/187, 2.ª edição, 1968 -Portugália Editora - Lisboa




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