Chá com Letras Online: A NOIVA DO MAR - LEITURAS DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIRA VIX


42.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal

A NOIVA DO MAR

Os dias calmos, tépidos, luminosos e coloridos que passei naquela pequena praia hão-de sempre lembrar-me como se tornassem a agasalhar-me com o mesmo carinho. O pior foi o epílogo…
Estávamos no hotelzito como se não tivéssemos saído de casa. Éramos discretos, ninguém nos afligia. A hoteleira, como velha ama, vinha perguntar-nos graciosamente se tínhamos gostado da sopa, se o peixe era fresco e o vinho gasoso.
- Tudo muito bom, senhora D. Esperança. Tudo muito bom…
Era o que a maternal patroa queria ouvir. Retirava-se para a cozinha e nós ficávamos à mesa, tempo esquecido, olhando uns para os outros… Nem refeitório conventual seria tão calmante.
Saímos, às vénias, uns para o pinhal, outros para a serra. À praia, depois do almoço, poucos regressavam. A própria Noiva do Mar, sempre mergulhada em cisma e no trabalho das ondas, não ia conversar com a franja de espuma que humedecia a areia. Voltava ao seu lugar favorito – a soleira da porta dum moinho de vento abandonado.
Nós não sabíamos quem ela era. Nem para nós olhava… com olhos glaucos, olhava para dentro. Mas, com expressão rancorosa… Só diante do mar é que a sua vista, como fita verde, se desenrolava.
- Não é bem certa, frisou a D. Esperança. Vem aqui todos os anos, tem para cada dia um vestido, e é a última a ir-se embora. Às vezes, para fechar a casa, espero que se vá. É doida pelo Outono…
- É a Noiva do Mar, murmurou um velho que comia um cesto de maçãs a cada sobremesa. É a Noiva do Mar.
Era preciso que todos os nus desaparecessem da praia, que as últimas barracas se fechassem, que já não houvesse ninguém na enseada, só a mulher do sargaço, para ela descer até à linha de água. Debruçava-se então para apanhar beijinhos, coitada…
Observei-a, porque também eu me fui deixando por ali ficar. O tempo corria doce, e eu tinha ali que fazer. Ia em meio a minha tarefa, que consistia em ler, de lápis na mão, as obras de velho autor grego escravizado a Roma. Levei-as no meu saco, pensando que só ali, à beira de água, as poderia ler.
Parecia-me, no isolamento, com a Noiva do Mar. Também olhei para dentro, mas, à aproximação de hóspede ou hóspeda do hotelzito, desfazia-me em cortesias. Fogo de barragem, que me evitou familiaridades.
Pelo nome, não cheguei a conhecer nenhum dos comensais. Mas, pus-lhes algumas alcunhas para os definir e guardar na retentiva. Uma dama, vestida de cetim muito liso, cor de botão-de-ouro, foi para mim Dona Sol. Um filho-família bem comportado, que acompanhava as tias, chamando-lhes titis, como se usasse babeiro, aos trinta e cinco anos, era o Senso-Comum. Uma senhora fina, rosa-chá feita senhora, mas, acompanhada de um sujeito de longa barba em fio, como uma guita, chamava-lhe eu, entre mim, Duquesa de Barbante.
E o velho, que, ao aparar maçãs, conversava com elas, repetindo a cada uma os mesmos ditos? Por exemplo: subiram o mar mil lanchas à faneca. Subiram o mar mil lanchas à faneca… Frase que apanhasse a dente, misturava-a e engolia-a com polpa de maçã. Era o Senhor Esteriótipo.
Interessante, vá que não vá, era um colégio de ninfas tropicais. Tipos linfáticos, olhos salientes armados de grossos vidros, mas, que curiosos torsos morenos! Pena era serem tão compridas. À hora do banho, pareciam garças, pisando a areia. Garças de óculos… Nunca os largavam. Marquei-as, no meu ficheiro, com o insosso nome de Pernaltas.
Pouco me apetece recordar a velha, que fez do sol o último namorado. Mostrava-lhe tudo, no último requinte de exibição e sensualidade. Mas, tudo o que lhe mostrava eram peles, que lhe forravam o corpinho chato. Era a Soleta.
Eu ia lendo, que o tempo, continuava doce. Às vezes, na maré baixa, pedia a um barqueiro que me levasse à Ilha do Silêncio.
Assim denominei um rochedo, que a maré alta cobria. Diabo do rochedo… Tinha umas grutas, aonde não chegava som do mar, nem som da terra. Era a morte da música. Ali me concentrava eu com o meu livro. No regresso, olhando para terra, via a Noiva do Mar, na sua duna, sentada na soleira do moinho de vento abandonado.
Ficámos sós no hotelzito. Eu, o velho que comia maçãs e a Noiva do Mar.
A velha desistira de mostrar ao Sol as suas lercas. O Senso-Comum, a reboque das tias, vestido de preto, vi-o embarcar no comboio de Espanha. As Pernaltas, saltando de rochedo em rochedo, sumiram-se da minha vista. Os Duques de Barbante fizeram também as malas. Fiquei só, com o velho guloso de frases e maças, mais a Noiva do Mar, que nem para nós olhava… De ponto em branco, passava os dias no areal deserto.
Fugi também do hotelzinho quando o velho começou a remoer à sobremesa a sua última frase. Que seca!
- A Noiva do Mar casou com o Mar. Nada mais natural… A Noiva do Mar casou com o Mar. Nada mais natural. Pois não é assim, caro senhor?
O caro senhor era eu, mas, não lhe respondia, nem era preciso. Ele continuava na sua e eu na minha, isto é, no meu mutismo.
Uma onda tinha envolvido e levado consigo a esquisita criatura. A Noiva do Mar casou com o Mar. Nada mais natural, caro senhor…
Desisti de esperar que o cadáver aparecesse, porque a cega-rega do velho me afligia de morte.

JOÂO DE ARAÚJO CORREIA - Folhas de xisto – “A Noiva do Mar”, págs. 133/138, 2.ª edição, 1968 -Portugália Editora - Lisboa

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