41.º ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA
Selecção de Maria José Areal
O PALACETE ENCANTADO
Aí, de volta desse palacete, construído há meio século no meio desses campos, criou-se uma lenda como na Idade Média se criaria em torno de castelo assente numa rocha.
Quem erigiu o palacete, ou o mandou erigir, com dinheiro grosso que trouxe do Brasil, foi o Comendador Agostinho. Teria cinquenta e cinco anos quando por aqui apareceu, vindo de longe, não se sabe donde… Rezam os antigos que tinha o rosto redondo e os olhos pretos, escondidos entre pálpebras carnudas. Não era natural daqui. Mas, passando por esta veiga, e por esta vila, apreciou ambas como se dissesse: rico sítio para acabar, em paz comigo e com deus, os dias da minha vida. É possível até que me façam presidente da Câmara ou provedor do Hospital. Para que serve o dinheiro? Bem me custou sair comendador, e consegui-o… O dinheiro serve para tudo. Aqui ficarei, eu e Nadir, até que me levem para o cemitério. Construo o palacete e hei-de construir o meu jazigo. As duas obras, ou eu não seja o Comendador Agostinho, hão-de dar que falar…
E deram. Palacete e jazigo ficaram o que se diz um brinco. O homem, apesar de brasileiro, tinha um migalho de gosto. Construiu à moda da época, muito ferro fundido, muito estuque, mas, diga-se a verdade, muito pé direito, boa caixilharia e umas pinturas fingidas, que ainda hoje se poderiam admirar se alguém se atrevesse a visitar a casa.
Brasileiro e Nair instalaram-se, foram visitados, começaram a ser felizes, mas, daí a pouco, o Brasileiro entrou de enlanguescer… Contava Nair que o seu Comendador tinha visões, se lhe representavam, na parede do quarto e do salão, figuras que afligiam ele. Ficava suando uma coisa à toa, um rio tolo, já se viu?
Agostinho apontava o dedo ao nariz, pedindo a Nair que guardasse segredo. As visões eram imagens de mulheres que tinham importado de Portugal para os gineceus do Brasil. Eram suas irmãs, primas, sobrinhas, atraídas por ele, na flor da idade, com o engodo de trabalho leve, decente, bem remunerado. Eram irmãs, primas e sobrinhas de patrícios seus, feitos com ele no veio do negócio branco. Via-as chegar ao Rio. Tímidas espantadas, toscas, mas, prometedoras de belo rendimento à superfície da pele descoberta e debaixo das serguilhas que as agasalhavam. Iam em estado de toiras para o sacrifício. Depois, a iniciação, a mudança de traje, o banho, o perfume, a visita de belos cavalheiros, o primeiro café, o licor, a queda e algumas lágrimas. No auge da dissolução, cumpriam os deveres do ofício com inspirado requinte. Saíam sábias no atrair e no corresponder. Não eram salamandras, não… Apagavam com fogo próprio o lume que acendiam. Eram fatais. Mas, vinha o declínio, a beneficência, a enfermaria, a morte. Então, sim, é que o acusavam, como vermes que saltam à cara, como vermes de podridão.
Fugia espavorido. Nair agarrava-o pela aba do chambre ou do paletó e dizia:
- Calma, seu Comendador! O sior veio em terra antiga. O sior mêmo é hoje terra antiga. Não compreende uso de terra nova. Terra véia é esquisita. Nova… tudo cria. Vamo, seu Comendador, outra vez em seu Rio. Iremo de lá para outra parte. O sior se casou comigo, sou sua muié, não abandono o sior. Vem daí, home.
Foram. O Comendador ofereceu à Câmara a casa e o jazigo com a condição da Câmara dar o seu nome à praça principal da terra. É, como os senhores aí vêem, a praça do Comendador Agostinho.
Passou por aqui uma dama, que também quis ser a principal da terra. Vinha ornada de chapéu de pluma, que ora se irritava, ora ondulava. Seduziu-a o palacete, comprou-o à Câmara, vá de se instalar, com aia e criadas. Deu esmolas a rodos, conquistou a simpatia da vila e arredores, principalmente senhoras. Fez-se catequista. Ofereceu à igreja um altar novo, mas, quando a pluma, no tope do chapéu, ia a endireitar-se-lhe definitivamente, como flâmula gloriosa… Passava mal as noites. Ouvia, fora da sazão, uma espécie de chilreio nos beirais do palacete. Era um piar mais aflito… Parecia uma queixa de milhares de asas e de bicos. Se abrisse uma janela, invadiam-lhe o quarto revoadas de passarinhos tristes, com as asas crestadas como se tivessem atravessado chamas.
D. Segisnanda, como lhe chamavam, tinha um exército lá em baixo, com mãos descomunais, parecia um homem, a missão de parteira. Mas, por cada parto de termo a que assistia, contava em seu activo duas dúzias de abortos que fazia. Não é pecado nenhum, explicava. Antes mais do que amanhã desgraçados.
Com esta opinião acomodou e se acomodou durante anos e anos. Enriqueceu. Mas, no tarde, é que foram elas… No fofo palacete, como que a vida se vingou, mandando-a perseguir por enxames de vítimas da sua mão enorme.
Nomeou procurador, entregou-lhe o palacete e regressou à cidade.
No tempo da guerra, prestou-se esta vila, meio raiana, a vários contrabandos. Vinham aí, como relâmpagos, conferenciar com intermediários lapuzes, mas, sagazes, grandes figurões acreditados no comércio rico. Jantavam e dormiam por aí, em pensões ignóbeis, indignas de suas senhorias – corpos bem tratados, a face brunida e o bigode criado à mão, fio a fio, por escrupuloso barbeiro. Dormiam mal, mas, se não fosse o nojo, comeriam bem. Para estes lados, como sabem, há renovos deliciosos. Vinho, não se fala…
Alguém se lembrou então de fazer do palacete uma estalagem própria para hóspedes de tratamento. Boa ideia… Não há como aproveitar a maré. A guerra, como um corcel, tinha tomado o freio nos dentes. Prometia não ter fim. Mas, se acabasse, acabou-se, já o negócio teria dado um dinheirinho bonito.
O homem da bela ideia, mancomunado com o procurador da D Segisnanda, abriu de par em par o palacete. Atraiu os argentários. Inaugurou, nestes desvios, o preço alto em hospedagem… Não discutiram… Gabaram o serviço. E, limpando o beiço fino a guardanapos de holanda, confessaram: agora, sim, que já se pode comer.
O pior é que, de noite, nenhum punha olho. Erguia-se desfeito, com a face caída e o bigode murcho. Cada um tinha visto, na parede do quarto, o filme se sua vida. Fugia aterrado. Metia-se no comboio ou no automóvel e… ala!
Ficou a vila deserta de figurões. Passavam de largo… Os correspondentes iam à estação ou lá adiante, à estrada, entender-se com eles. Mas, não pareciam os mesmos. Falavam de dentro das peliças como da cova, por última necessidade.
O palacete é bonito e vende-se barato. Mas, como ninguém se atreve com a consciência, ninguém o compra. Ninguém lhe quebra o encanto. Vai envelhecendo, mas, devagar, porque foi bem construído. O Comendador Agostinho caprichou na escolha dos materiais. O melhor que houve, custe o que custar. Não olho a dinheiro…
JOÂO DE ARAÚJO CORREIA - Folhas de xisto – “O Palacete encantado”, págs. 90/98, 2.ª edição, 1968 -Portugália Editora - Lisboa
Selecção de Maria José Areal
O PALACETE ENCANTADO
Aí, de volta desse palacete, construído há meio século no meio desses campos, criou-se uma lenda como na Idade Média se criaria em torno de castelo assente numa rocha.
Quem erigiu o palacete, ou o mandou erigir, com dinheiro grosso que trouxe do Brasil, foi o Comendador Agostinho. Teria cinquenta e cinco anos quando por aqui apareceu, vindo de longe, não se sabe donde… Rezam os antigos que tinha o rosto redondo e os olhos pretos, escondidos entre pálpebras carnudas. Não era natural daqui. Mas, passando por esta veiga, e por esta vila, apreciou ambas como se dissesse: rico sítio para acabar, em paz comigo e com deus, os dias da minha vida. É possível até que me façam presidente da Câmara ou provedor do Hospital. Para que serve o dinheiro? Bem me custou sair comendador, e consegui-o… O dinheiro serve para tudo. Aqui ficarei, eu e Nadir, até que me levem para o cemitério. Construo o palacete e hei-de construir o meu jazigo. As duas obras, ou eu não seja o Comendador Agostinho, hão-de dar que falar…
E deram. Palacete e jazigo ficaram o que se diz um brinco. O homem, apesar de brasileiro, tinha um migalho de gosto. Construiu à moda da época, muito ferro fundido, muito estuque, mas, diga-se a verdade, muito pé direito, boa caixilharia e umas pinturas fingidas, que ainda hoje se poderiam admirar se alguém se atrevesse a visitar a casa.
Brasileiro e Nair instalaram-se, foram visitados, começaram a ser felizes, mas, daí a pouco, o Brasileiro entrou de enlanguescer… Contava Nair que o seu Comendador tinha visões, se lhe representavam, na parede do quarto e do salão, figuras que afligiam ele. Ficava suando uma coisa à toa, um rio tolo, já se viu?
Agostinho apontava o dedo ao nariz, pedindo a Nair que guardasse segredo. As visões eram imagens de mulheres que tinham importado de Portugal para os gineceus do Brasil. Eram suas irmãs, primas, sobrinhas, atraídas por ele, na flor da idade, com o engodo de trabalho leve, decente, bem remunerado. Eram irmãs, primas e sobrinhas de patrícios seus, feitos com ele no veio do negócio branco. Via-as chegar ao Rio. Tímidas espantadas, toscas, mas, prometedoras de belo rendimento à superfície da pele descoberta e debaixo das serguilhas que as agasalhavam. Iam em estado de toiras para o sacrifício. Depois, a iniciação, a mudança de traje, o banho, o perfume, a visita de belos cavalheiros, o primeiro café, o licor, a queda e algumas lágrimas. No auge da dissolução, cumpriam os deveres do ofício com inspirado requinte. Saíam sábias no atrair e no corresponder. Não eram salamandras, não… Apagavam com fogo próprio o lume que acendiam. Eram fatais. Mas, vinha o declínio, a beneficência, a enfermaria, a morte. Então, sim, é que o acusavam, como vermes que saltam à cara, como vermes de podridão.
Fugia espavorido. Nair agarrava-o pela aba do chambre ou do paletó e dizia:
- Calma, seu Comendador! O sior veio em terra antiga. O sior mêmo é hoje terra antiga. Não compreende uso de terra nova. Terra véia é esquisita. Nova… tudo cria. Vamo, seu Comendador, outra vez em seu Rio. Iremo de lá para outra parte. O sior se casou comigo, sou sua muié, não abandono o sior. Vem daí, home.
Foram. O Comendador ofereceu à Câmara a casa e o jazigo com a condição da Câmara dar o seu nome à praça principal da terra. É, como os senhores aí vêem, a praça do Comendador Agostinho.
Passou por aqui uma dama, que também quis ser a principal da terra. Vinha ornada de chapéu de pluma, que ora se irritava, ora ondulava. Seduziu-a o palacete, comprou-o à Câmara, vá de se instalar, com aia e criadas. Deu esmolas a rodos, conquistou a simpatia da vila e arredores, principalmente senhoras. Fez-se catequista. Ofereceu à igreja um altar novo, mas, quando a pluma, no tope do chapéu, ia a endireitar-se-lhe definitivamente, como flâmula gloriosa… Passava mal as noites. Ouvia, fora da sazão, uma espécie de chilreio nos beirais do palacete. Era um piar mais aflito… Parecia uma queixa de milhares de asas e de bicos. Se abrisse uma janela, invadiam-lhe o quarto revoadas de passarinhos tristes, com as asas crestadas como se tivessem atravessado chamas.
D. Segisnanda, como lhe chamavam, tinha um exército lá em baixo, com mãos descomunais, parecia um homem, a missão de parteira. Mas, por cada parto de termo a que assistia, contava em seu activo duas dúzias de abortos que fazia. Não é pecado nenhum, explicava. Antes mais do que amanhã desgraçados.
Com esta opinião acomodou e se acomodou durante anos e anos. Enriqueceu. Mas, no tarde, é que foram elas… No fofo palacete, como que a vida se vingou, mandando-a perseguir por enxames de vítimas da sua mão enorme.
Nomeou procurador, entregou-lhe o palacete e regressou à cidade.
No tempo da guerra, prestou-se esta vila, meio raiana, a vários contrabandos. Vinham aí, como relâmpagos, conferenciar com intermediários lapuzes, mas, sagazes, grandes figurões acreditados no comércio rico. Jantavam e dormiam por aí, em pensões ignóbeis, indignas de suas senhorias – corpos bem tratados, a face brunida e o bigode criado à mão, fio a fio, por escrupuloso barbeiro. Dormiam mal, mas, se não fosse o nojo, comeriam bem. Para estes lados, como sabem, há renovos deliciosos. Vinho, não se fala…
Alguém se lembrou então de fazer do palacete uma estalagem própria para hóspedes de tratamento. Boa ideia… Não há como aproveitar a maré. A guerra, como um corcel, tinha tomado o freio nos dentes. Prometia não ter fim. Mas, se acabasse, acabou-se, já o negócio teria dado um dinheirinho bonito.
O homem da bela ideia, mancomunado com o procurador da D Segisnanda, abriu de par em par o palacete. Atraiu os argentários. Inaugurou, nestes desvios, o preço alto em hospedagem… Não discutiram… Gabaram o serviço. E, limpando o beiço fino a guardanapos de holanda, confessaram: agora, sim, que já se pode comer.
O pior é que, de noite, nenhum punha olho. Erguia-se desfeito, com a face caída e o bigode murcho. Cada um tinha visto, na parede do quarto, o filme se sua vida. Fugia aterrado. Metia-se no comboio ou no automóvel e… ala!
Ficou a vila deserta de figurões. Passavam de largo… Os correspondentes iam à estação ou lá adiante, à estrada, entender-se com eles. Mas, não pareciam os mesmos. Falavam de dentro das peliças como da cova, por última necessidade.
O palacete é bonito e vende-se barato. Mas, como ninguém se atreve com a consciência, ninguém o compra. Ninguém lhe quebra o encanto. Vai envelhecendo, mas, devagar, porque foi bem construído. O Comendador Agostinho caprichou na escolha dos materiais. O melhor que houve, custe o que custar. Não olho a dinheiro…
JOÂO DE ARAÚJO CORREIA - Folhas de xisto – “O Palacete encantado”, págs. 90/98, 2.ª edição, 1968 -Portugália Editora - Lisboa
Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.
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