Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA XX

LEITURAS DE TORGA XX
20.º Encontro com Miguel Torga

BICHOS II – ENCONTRO EM TEMPO DE PANDEMIA – 2.ª EDIÇÃO

Porquê a escolha de CEGARREGA
A Cegarrega, mais conhecida por Cigarra, é um dos animais que Miguel Torga escolhe para fazer parte do livro, BICHOS.
O cão, o gato, o burro, o corvo, o melro, o galo, o touro… e outros, são animais que dão vida e voz às preocupações comportamentais do Homem, numa óptica pedagógica do autor. Para cada um, e em cada um, uma ou mais mensagens bem orquestradas, cujo objectivo primeiro é colocar-nos a pensar na forma mais aturada.
Cegarrega é olhada com desdém, pelos homens, que mourejam desde a manhã até ao pôr do sol. Porque o pão urge, a cama é precisa e as telhas do telhado também. Neste tempo de luta pela sobrevivência, não há lugar para quem passa a vida a cantar, mesmo que o canto seja urgente, na vida de cada um.
Por sua vez, Cegarrega faz eco da sua importância, como parte integrante da natureza que a engendrou, e cujo percurso foi longo e penoso até chegar. Só escutam e rejeitam o seu canto, mas ninguém ousou saber das canseiras, das suas penas, do seu caminho.
Cegarrega descansa, sorri, quando escuta a voz do poeta, seu irmão.
De costas voltadas à própria vida, continuamos a pensar no ter (que é importante) e não valorizamos o que nos pode amaciar a vida, que urge ser global e harmoniosa. Valorizamos a produção, o salário, a economia e deixamos para as calendas, a espiritualidade, que se alimenta de outras VINHAS.
António Alçada Baptista dizia, que a vida sem poesia não o seria.
Texto e selecção de Maria José Areal

CEGARREGA
É difícil. Isto de começar num monturo e só parar na crista dum castanheiro, tem que se lhe diga. É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, crisálida… Todas as estações do íngreme calvário da organização. Animada pelo sopro da vida, a matéria necessita do calor de um ventre. Antes dessa íntima comunhão, desse limbo purificador, não poderá ter forma definitiva. Custa. Mas a lei natural é inexorável. Exige consciência de cosmos antes da consciência de ser. O calor dá no ovo. Aquece-o e amadurece-o. A casca quebra. Depois… Ah, depois é essa descida ao húmus, e essa existência amorfa, nem germe, nem bicho, nem coisa configurada. Largos dias assim. Até que finalmente em cada esperança de perna nasce uma perna, e cada ânsia de claridade é premiada com dois olhos iluminados. Cresce também uma boca onde a fome a reclama, e surgem as asas que o sonho deseja…
É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, tudo se consegue. Até fazer parte do coro universal.
- Já hoje ouvi a cigarra…
- É tempo dela.
Nenhuma palavra de apreço pela dureza do caminho andado. Paciência. O teatro do mundo tem palco e bastidores. As palmas da plateia festejam somente os dramas encenados. Que remédio, pois, senão a gente resignar-se e aceitar as sínteses levianas. Nascia do tempo. Muito bem. Ninguém mais ficaria a conhecer a fundura dos abismos em que se debatera. Protoplasma, lagarta, ninfa… quase que sentia ainda no corpo as fases da transfiguração. Mas pronto, chegara! Agora era receber o calor do presente, e cantar. Cantar o milagre da anódina e conseguida ascensão.
E cantava.
A Primavera estava no fim, e o estio ia começar. As cerejas pontuavam a veiga de sorrisos vermelhos. As searas, gradas de generosidade, aloiravam. Contentes, os ramos relaxavam de vez os músculos crispados, já esquecidos das ventanias do Inverno. Havia penugens de esperança em cada ninho. Mas não era a doçura das seivas, a paz animal ou vegetal que saudava. Vencera todos os obstáculos dum árido caminho, sem ajuda de ninguém. No fim do esforço, nem sequer essa vitória via reconhecida. Por isso, nada devia aos outros, e nada lhes daria, a não ser a beleza daquele hino gratuito.
Ainda no rés-do-chão das metamorfoses, apetecera-lhe contemplar dum alto miradoiro o berço nativo. E começou a subir, a subir, a subir sempre. Depois, serenamente, olhou. Nesse momento, porém, um raio quente de sol caiu-lhe amorosamente sobre o dorso. Contraiu-se de volúpia. E, da plenitude que a empolgou, ergue-se a voz de triunfo. Não era a vontade que a fazia vibrar. Era o corpo, possesso de contentamento, que, num espasmo total, estridentemente glorificava a própria perfeição atingida.
- Até azamboa a gente!
O senhor camponês, a reclamar. Suado e soturno, a mourejar de manhã à noite, queria silêncio à volta. Tapasse os ouvidos! Nenhuma força humana ou desumana a faria calar. Com que razão? Porquê?
Porque a fome era triste, os dias passavam velozes e urgia ajudar a natureza a ser pródiga? Imaginem!
Pois que aproveitasse as horas, os minutos e os segundos, num anseio insaciável de fartura. Ela continuaria ali, preguiçosa, imprevidente, num desafio sonoro à sensatez.
- Muita alegria tem tal bicho!
- A alegria passa-lhe…. É deixar vir o Inverno…
A pressurosa formiga! A coitada! Como se trabalhar fosse um destino!
- E temo-la aí, não tarda muito.
Evidentemente. Mas que lhe importava? A escolha estava feita. Que as folhas do calendário, como as das árvores, fossem caindo, e que os ceifeiros lançassem as gadanhas ao trigo maduro, numa condenação de galerianos. Que nas tulhas se acumulassem toneladas de grão. Ao lado dos celeiros atestados, ficaria um celeiro vazio. Um símbolo de inquebrantável confiança.
- Mas em quê? – perguntava um pardal suspicaz.
Outro que não compreendia. Outro que só concebia a existência a saltar de migalha em migalha.
- Chega-lhe, Cegarrega!
O Poeta! Louvado seja Deus! Até que enfim lhe aparecia um irmão!... Um irmão que sabia também que cantar era acreditar na vida e vencer a morte.
A morte que a espreitava já, com os olhos frios do Outubro…
Miguel Torga – Bichos págs. 59/61. 3.ª edição, 2010- Leya, SA


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