Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA XIV

LEITURAS DE TORGA XIV

“O Universal é um local sem paredes”

14.º Encontro nos Diários de Miguel Torga para nos encontrarmos no seu Diário XII.
Todo ele muito especial, pois atravessa a Revolução do 25 de Abril de 1974.
Assim, podemos entender o seu perfil de escritor, crítico, atento aos
movimentos e aos homens e preocupado com as atitudes. Sempre assim foi e no-lo mostrou, sorte a nossa, e assim continuará até ao fim dos seus dias.
Desfrutem, por favor
Texto e selecção de Maria José Areal

Era tanta a beleza da solidão contemplada, despegava-se das serranias tanta calma e tanta vida, os horizontes pediam-lhe uma concentração tão forte dos sentidos e uma dispersão tão absoluta deles, que os olhos como que lhe abandonavam o corpo e se perdiam na imensidão. Simplesmente essa diluição contínua que sofria no seio da natureza não excluía uma posse secreta de cada recanto do seu relevo. Uma espécie de percepção interior, de íntima comunhão de amante apaixonado, capaz de identificar o penhasco de Alcaría pelo cheiro e pelo tato.
Novos Contos da Montanha

DIÁRIO XII:
Curral da Vacas, Chaves, 11 de Abril de 1974 – O auto da Paixão num pobre lugarejo transmontano transfigurado numa Galileia imaginária, a fonte de Jacob, o Jardim das Oliveiras e o Sinédrio reduzidos a uma bacia cheia de água, a meia dúzia de ramos espetados no chão, a um palanque de feira. Mas nesse cenário ingénuo e sumário, tudo se passou como no verdadeiro – um Cristo do mundo a sofrer as injustiças e agruras do mundo. Pilatos era qualquer Regedor, presidente da Câmara ou juiz poltrão a lavar as mãos na hora da verdade; Caifás, o influente poderoso e rancoroso, quem não é por nós é contra nós; Judas, o mau vizinho que muda os marcos e jura peitado; a turba judaica, a multidão que assistia, mata, queima, esfola, conforme a onda emotiva. Não havia vedetas. Nem o próprio Redentor tentava ultrapassar a medida humana. Todos faziam diligentemente o seu papel, a debitar o texto e a gesticular como a rudeza era servida. A tarde estava de rosas, e a doçura da natureza emoldurava harmoniosamente aquela lúdica catarse colectiva, teatro e realidade misturados, festa e pesadelo, agonia fingida e vivida. O povo tem isso: sabe encontrar o meio termo feliz, o equilíbrio entre as exigências da alma e as fraquezas do corpo. A tragédia do Calvário é a nossa própria tragédia. Mas Deus é Deus, um ser absoluto. Pode sofrer absolutamente. Nós somos criaturas relativas… Por isso, a esponja de fel que desta vez o Centurião chegou aos lábios de Cristo era um naco de pão de ló ensopando em Vinho fino…
Miguel Torga – Diário XII, págs. 55/56, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1986

Coimbra, 27 de Abril de 1974 – Ocupação das instalações da Pide. Enquanto, juntamente com outros veteranos da oposição ao fascismo, presenciava a fúria de alguns exaltados que reclamavam a chacina dos agentes, acossados lá dentro, e lhes destruíam as viaturas, ia pensando no facto curioso de as vinganças raras vezes serem exercidas pelas efectivas vítimas da repressão. Há nelas um pudor que as não deixa macular o sofrimento. São os outros, os que não sofreram, que se excedem, como se estivessem de má consciência e quisessem alardear um desespero que jamais sentiram.
Miguel Torga – Diário XII, págs. 59/60, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1986

Coimbra, 14 de julho de 1974
ORAÇÃO
Peço-te lucidez, Senhor.
Rogo-te humildemente,
Em nome da terrena condição,
Que me não cegues neste labirinto
De paixões.
Que nele, aos tropeções,
Eu nunca chegue até onde, perdido,
O homem já não pode
Saber até que ponto é consentido
O jugo que sacode.
Miguel Torga – Diário XII, pág. 73, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1986

Albufeira, 28 de Agosto de 1975
LIBERDADE
- Liberdade, que estais no céu…
Rezava o padre nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.
- Liberdade, que estais na terra…
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas o silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
- Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.
Miguel Torga – Diário XII, pág. 133, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1986

Miranda do Douro, 2 de Maio de 1976.
PLANALTO
Alto céu, alta luz, alta pureza.
Ascensão da granítica aspereza
Dos homens e do chão.
Guiada pela mão
Da fome insatisfeita,
A teimosa charrua da vontade
Lavra e semeia as fragas da planura.
Mas a grande colheita
É de serenidade:
A paz azul em cada criatura.
Miguel Torga – Diário XII, pág. 148, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1986



Fotografia in: http://www.espacomigueltorga.pt/p70-miguel-torga-vida-e-obra-pt
Miguel Torga votando nas primeiras eleições após a revolução de Abril de 1974

Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.

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