Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA XVII

LEITURAS DE TORGA XVII

17.º Encontro com Miguel Torga, nos seus Diários.
Procurei diversificar as escolhas de hoje, neste 17º Encontro de nós com Miguel Torga.
Sempre se me afigura, que bem poderia ter selecionados outros momentos (textos, poemas), por me parecerem de grande relevância num conhecimento maior do escritor. Todavia, a este “fado” me encosto, assumindo a minha enorme dificuldade no momento da escolha. Quando se gosta de um escritor, tudo nos parece de oportuna escolha.
Que desfrutem!
Texto e selecção de Maria José Areal

DIÁRIO IX:
Macau, 10 de Junho de 1987 – Jantar tipicamente chinês, com o ritual devido. Comer é um acto de cultura. O civilizado alimenta-se; o selvagem enfarta-se. E gostei de, pela primeira vez na vida, estar sentado a uma mesa a ingerir cada iguaria como se engolisse uma hóstia. A comungar. Com a natureza ainda evidentemente, mas transfigurada por exigência do corpo e do espírito. Os acepipes já tão requintados como as maneiras. Em vez da posta suculenta de tubarão, o decocto alquímico das barbatanas. Em lugar do garfo gadanha, que é ainda uma lembrança penosa da mão troglodita, parcimoniosos e mágicos pauzinhos de prestidigitação. A necessidade nutritiva tornada oportunidade de prazer. Cada tempero a surpreender o paladar e a saber em todos os sentidos.
Miguel Torga – Diário XV, pág. 40, 1.ª Edição Revista, Coimbra/1990

Coimbra, 2 de Novembro de 1988 – Decididamente, morro incompreendido. Quem há-de entender certas reacções, certas atitudes, certas palavras a que sou obrigado à hora menos pensada? Dava nem sei o quê para não ter de dizer o que disse hoje a um bem-aventurado de espírito que se leva a sério. Mas calar-me seria pactuar. E eu não posso pactuar nem comigo mesmo. A minha autenticidade passa pela minha sinceridade. E tenho de pagar o preço dessa autoconsciência e dessa franqueza sem contemplações: ser no mundo um ermita convivente.
Miguel Torga – Diário XV, pág. 146, 1.ª Edição Revista, Coimbra/1990

Coimbra, 3 de Novembro de 1988 – Verseja. Mas não sabe o que é ser poeta, nem a que reino pertence a poesia. Se o soubesse, em vez de se pavonear impante no mundo, caminhava vergado. A poesia é uma permanente e grave prestação de contas à vida. E o poeta é um leproso que em nenhum tempo precisou de usar matraca para apavorar os circunstantes e merecer aos olhos deles a preventiva solidão a que o condenam.
Miguel Torga – Diário XV, pág. 146/147, 1.ª Edição Revista, Coimbra/1990

Coimbra, 14 de Julho de 1987
EVOCAÇÃO
Recordar…
Com saudades, lembrar
Os dias de sol claro
E alma clara,
Que passaram.
Ver-te bonita como então eras,
Sempre igual nas diversas primaveras
Que floriam
À volta do teu púdico sorriso.
Memorar o perdido paraíso
Onde nunca pecámos,
Nem instintivamente,
Nem seduzidos pela serpente,
Na cândida inocência de aprendizes,
E, castos, nos danámos, a sonhar
E a recitar
Poemas de poetas infelizes.
Miguel Torga – Diário XV, pág. 49, 1.ª Edição Revista, Coimbra/1990

Coimbra, 16 de Janeiro de 1989.
À NOITE
Musa cega, de versos luminosos
Cantados a Morfeu, deus sem memória,
No teu regaço, a glória
Dos poetas
Dura o que dura o sonho,
O transe inconsciente.
E tanto pertinente
Sonha a eternidade
Na claridade
Astral
Dum poema perfeito,
Que se desmente
Desfeito
Em névoa
Logo de madrugada,
Quando a alma, acordada,
Sem mais inspiração,
Se mortifica em vão,
Só de bruma lembrada!
Miguel Torga – Diário XV, pág. 157, 1.ª Edição Revista, Coimbra/1990


Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.

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