Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA XV

LEITURAS DE TORGA XV

15.º Encontro com Miguel Torga, nos seus Diários.
Selecção de textos:
Maria José Areal


DIÁRIO XIII:
S. Martinho de Anta, 10 de Julho de 1978 – O erro dos homens que nos governam é cuidar, por ignorância ou proselitismo, que o nosso povo, comunitário desde os primórdios, precisa de lições de comportamento social. Desconhecem que nenhuma pregação teórica pode negar as realidades vitais, e que toda a agressão provoca uma reacção. O que eles, no seu despeito doutrinário, apodam de conservantismo, não é mais do que a defesa instintiva de valores de cultura ameaçados. Valores milenários, que inculcam a liberdade escolhida por homens livres, e não outorgada por qualquer ideologia. Assumida voluntariamente e não recebida passivamente. Uma pátria é uma construção espiritual diária alicerçada no natural eterno. As reformas necessárias estão inscritas com nome na própria matriz de cada região. Quando são esquemas aplicados de fora, o rosto autêntico recusa a máscara deformadora. Também há rejeições nos corpos colectivos.
Miguel Torga – Diário XIII, págs. 37/38, 1.ª Edição Revista, Coimbra/1983

S. Martinho de Anta, 26 de Agosto de 1979 – Domingo. Dez horas. O sino da torre começa a chamar os fiéis e, como que num reflexo condicionado ao nível de toda a aldeia, as casas vão-se esvaziando. De blusa lavada e camisa passada, mulheres e homens sobem a rua, atravessam o largo e perdem-se em direcção à igreja, numa rotina religiosa paralela às outras, de semear e colher. O mesmo Deus adorado com as mesmas orações vidas inteiras, sem a mínima inquietação, sem o mínimo estremecimento de dúvida. A fé, alheia a qualquer metafísica, pragmática, saudavelmente natural e optimista. Quando muito, um argumento subentendido, que já nem é preciso formular: se a vida eterna é melhor do que esta, vale a pena acreditar nela. E basta, embora pareça pouco. Em matéria assim melindrosa, nem Pascal foi muito mais longe…
Miguel Torga – Diário XIII, pág. 110 , 1.ª Edição Revista, Coimbra/1983

S. Martinho de Anta, 28 de Agosto de 1979 – Cada vez mais propenso ao silêncio. Nele, ao menos, posso escutar o que a própria voz me não deixava ouvir. Passou o tempo em que toda a minha infelicidade se resolvia na felicidade de um verso.
Miguel Torga – Diário XIII, pág. 110 , 1.ª Edição Revista, Coimbra/1983

Coimbra, 10 de Junho de 1980.
MELANCOLIA
Longamente esperei.
Nenhum encontro estava combinado.
Era apenas fiado
Na intuição do amor
Que confiava.
Afinal, não vieste.
E adivinho o motivo:
O lume da velhice não aquece.
Arde e perece
Vivo,
Mas arrefece.
Miguel Torga – Diário XIII, pág. 136 , 1.ª Edição Revista, Coimbra/1983

S. Martinho de Anta, 27 de Setembro de 1980
QUIETUDE
Que poema de paz agora me apetece!
Sereno,
Transparente,
A surgir somente
Um rio já cansado de correr,
Um doce entardecer,
Um fim de sementeira.
Versos como cordeiros a pastar,
Sem o meu nome, em baixo, a recordar
Os outros que cantei a vida inteira.
Miguel Torga – Diário XIII, pág. 153, 1.ª Edição Revista, Coimbra/1983



Fotografia in: http://www.espacomigueltorga.pt/p70-miguel-torga-vida-e-obra-pt

Destaque na imprensa portuguesa à homenagem a Torga, na Fundação Gulbenkian

Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.

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