Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA XIII

LEITURAS DE TORGA XIII

Aqui, neste lugar, celebramos o nosso 13.º Encontro, entrando no Diário XI de Miguel Torga.
Apetecia-me repetir-vos que é verdadeiramente difícil para mim fazer uma escolha, - para vós -, quer poema ou prosa, neste ou noutro Diário qualquer deste nosso autor. Miguel Torga. Procuro sim selecionar temáticas diferentes, mas com alguma ligação, mesmo que vos parece imperceptível .
Assim sendo e para hoje, neste Diário XI escolhi os poemas: BRASIL (se bem se lembram Torga esteve em casa de seus tios, trabalhando duramente).
VIBRATO- um canto à mãe natureza, motivo presente na sua escrita – RELATO – a eterna humildade de se saber (considerar) poeta de pouca monta.
Finalmente, o Texto /prosa, onde nos mostra a forma como se sentia internado num hospital (as dores: suas e dos outros) e a valorização da vida.
Deixo-vos a vontade na continuação da leitura a que nos propusemos.
Texto e selecção de Maria José Areal

DIÁRIO XI:
Coimbra, 16 de Junho de 1970.
BRASIL
Brasil onde vivi, Brasil onde penei,
Brasil dos meus assombros de menino:
Há que tempo que te deixei,
Cais do lado de lá do meu destino!

Que milhas de angústia no mar da saudade!
Que salgado pranto no convés da ausência!
Chegar. Perde-te mais. Outra orfandade,
Agora sem o amparo da inocência.

Dois pólos de atracção no pensamento!
Duas ânsias opostas nos sentidos!
Um purgatório em que o sofrimento
Nunca avista um dos céus apetecido.

Ah, desterro do rosto em cada face,
Tristeza dum regaço repartido!
Antes o desespero naufragasse
Entre o chão encontrado e o chão perdido.

Miguel Torga – Diário XI pág. 93, 2.ª Edição Revista, Coimbra/1991

S. Martinho de Anta, 1 de Setembro de 1971
VIBRATO
Eis, finalmente. Os frutos prometidos
Nas flores da Primavera!
Nenhuma condição mais desespera
De viver.
A fome, agora., pode ser sincera:
Sempre que lhe apeteça, é só colher.

Mãe natureza:
Farto no teu regaço,
Quem não há-de cantar
De lírica e frenética alegria,
Se tiver voz ou asas de vibrar,
Se for poeta ou bicho de poesia?

Miguel Torga – Diário XI pág.141, 2.ª Edição Revista, Coimbra/1991

Coimbra, 5 de Março de 1973
RELATO
Foi longo o meu caminho de poeta,
Com versos de agonia demorada.
A vida imaginada
Paralela
À outra, acontecida.
E ambas a enfunar a mesma vela
Já sem rumo à partida.

Os áugures previam,
Os mapas ensinavam,
A bússola apontava…
Mas faltava-me a fé das almas confiadas.
Teimoso, repetia
A pergunta inquieta que fazia
Ao vazio das horas navegadas.

Que certa direcção
Dar ao timão
Numa viagem sem qualquer sentido?
O mar diariamente enfurecido,
O céu diariamente enevoado,
E o barco fatalmente conduzido
A um cais de morte sempre adivinhado…

Miguel Torga – Diário XI pág. 196/197, 2.ª Edição Revista, Coimbra/1991

Lisboa, Hospital de S. Luís. 26 de Junho de 1972 – Aqui estou, esfaqueado e curtido de dores, a sofrer em silêncio e a ouvir os gritos lancinantes de um colega de penitência que se esgota em sangue num quarto ao lado. Parece que era um bom homem, que foi adiando a operação a ver se arrumava primeiro a família, e que, quando se resolveu, já só um milagre. Nunca o vi, nem verei, pois vai morrer. Mas nunca uma alma esteve tão atenta ao sofrimento doutra, nem tanto lhe desejou a salvação. Real solidariedade humana, ou mero egoísmo, interessado em arredar sombras fatídicas das redondezas? A ironia do “amar o próximo como a si mesmo”! Mormente quando cada célula do corpo parece em carne viva, e passamos as horas a contar as gotas de soro que nos vão entrando nas veias…
É curioso, como nestes momentos assim o espírito se torna lúcido e humilde! Como reconhece sem custo que os valores morais nada valem, ou valem muito pouco, ao lado do instinto da conservação…
Miguel Torga – Diário XI pág. 159, 2.ª Edição Revista, Coimbra/1991

#fiqueemcasa #ficaemcasa



Fotografia in:http://www.espacomigueltorga.pt/p70-miguel-torga-vida-e-obra-pt
Fazenda de Santa Cruz: 1920 emigrou para o Brasil
para a fazenda de um tio paterno que trabalhou durante 5 anos.



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