Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA VIII

8.º Encontro com Miguel Torga 

"Precisava cada vez mais de enraizar a inspiração no húmus nativo. O que escrevia ficava insípido sempre que lhe faltava o sal da terra."
Miguel Torga

Miguel Torga fala assim dos seus conterrâneos – transmontanos. 
“Homens de uma só peça, inteiriços e espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão. Castiços nos usos e costumes, cobrem-se com varinos, croças e capuchas e mais roupas de serrobeco ou de colmo e, nas grandes ocasiões ostentam uma capa de honras, que nenhum rei! Usam todos bigode e alguns suíças, e põem naqueles pêlos da cara uma dignidade tal, um sentido tão profundo de pessoa humana, que é de a gente se maravilhar. Às vezes agridem-se uns aos outros com tamanha violência que parecem feras. Mas olhados de perto esses nefandos crimes, vê-se que os motiva apenas uma exacerbação de puras e cristalinas virtudes, que só não são teologais porque Deus não quer. Fiéis à palavra, amigos do seu amigo, valentes e leais, e movidos por altos sentimentos que matam ou morrem. Ufanos da alma que herdaram, querem-na sempre lavada, nem que seja com sangue. A lendária franqueza que vem nos livros, é deles, realmente. Mas radica na mesma força interior, que, levada à cegueira da exaltação, pode chegar ao assassínio. Bate-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde:
- Entre quem é! …”
Miguel Torga, Portugal, 5.ª ed., Coimbra, 1986, pp 37-38

DIÁRIO VI:
Coimbra, 11 de Maio de 1952
JARDIM DA LEMBRANÇA
No jardim da lembrança, onde cultivo as flores
Da perpétua e alada primavera,
Nem a terra se cansa,
Nem desmaiam as cores,
Nem o pólen dos sonhos desespera.

Tudo ali permanece
Fiel ao devoto jardineiro,
Que na distância tece
O halo que merece
Cada rosa acordada no canteiro,
Quando o dia das rosas amanhece.

Horto da infância entre areais adultos,
Há nele ainda a sombra de dois vultos
Que debruam de amor a pequena extensão
Desse mundo florido
Onde sempre feliz tenho vivido,
Graças à graça da imaginação.
Miguel Torga – Diário VI, pág. 82, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1978

Coimbra, 5 de Dezembro de 1952
AVISO
Um Deus que me queira, um dia,
Depois desta penitência
De viver,
Se me não der a inocência
Que perdi,
Terá o desgosto de ver
Que de novo lhe fugi.

Quero voltar a criança,
À meninice dos ninhos.
Quero andar pelos caminhos
Com olhos de confiança,
A quebrar a minha lança
Nos moinhos…
Miguel Torga – Diário VI, pág. 135, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1978

Coimbra, 5 de Março de 1953 – Chega a dar vontade de rir! Há vinte e cinco anos diante deste panorama literário: meia dúzia de sujeitos, sempre os mesmos, a trocarem entre si versos e dardos.
Nestes pequenos mundos como o nosso, a cultura perde o seu aspecto universal e concentra-se em siglas só inteligíveis a certos. E esses bem-aventurados sentam-se então às mesas dos cafés ou das revistas, e praticam, muito compenetrados, uma espécie de jogo da bisca em grande estilo, de que o resto dos mortais não percebe patavina. Trunfam, destrunfam, cortam, baralham, dão cartas de novo, e sempre convencidos de que estão a manobrar a glória, quando a partida nem a feijões é!
Lembram aqueles chineses que vendem gravatas nas feiras e falam incansavelmente uns com os outros numa língua de ratos a chiar. Eles lá dizem, e lá se entendem… Mas são ilhas na multidão.
Miguel Torga – Diário VI, pág. 178, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1978


#fiqueemcasa #ficaemcasa


Pode acompanhar e participar nas leituras publicadas semanalmente no grupo Comunidade de Leitores: Chá com Letras na página do facebook da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira.

Comentários