Chá com Letras Online: LEITURAS DE TORGA VII

7.º Encontro com Miguel Torga, nos seus Diários.
Neste 7.º Encontro com Miguel Torga, atravessei o seu Diário V, onde a escolha de um texto ou de um poema continua a ser, para mim, uma tarefa assaz perigosa e pejada de subjectividade, obviamente. Mas não havendo outra forma, o que tem que ser, urge.
Assim, deixo-vos uma imagem do autor num pequeno texto, que extraí da sua obra, “Criação do Mundo”, como cartão de boas vindas a este espaço, que sendo nosso é palco e abraça este autor.
Gostaria que comentassem, oferecendo-me a oportunidade de falar um pouco mais do poema GOETHE, e do deslumbre que Miguel Torga tinha pelo mar, sendo um homem nascida para lá dos montes.
Texto e selecção de Maria José Areal

“O livro é o melhor espelho da alma do autor” – Miguel Torga

O tempo acabara por me ensinar que não há espelho mais transparente do que uma página escrita. É nela que fica testemunhada para todo o sempre a verdade irreversível do autor: a sua autenticidade, se foi sincero, e a sua falsidade, se mentiu. É aí onde os possíveis leitores de hoje e os de amanhã o surpreendem e julgam, e ele próprio, que se procura, acaba por encontrar uma imagem à sua semelhança ou uma ficção irremediavelmente desfigurada.
Miguel Torga – A Criação do Mundo, IV, Coimbra, 1974, pág 17.

DIÁRIO V:
Palheiros de Mira, 7 de Maio 
Ver o mar é agora, antes de o turismo alindar a areia, quando os barcos desmantelados e de borco passam fome como os pescadores. Quando nenhum alcatraz se atira no horizonte, e as ondas frias se aquecem na praia como podem.
Desapossado da sua solidão durante os meses quentes, o litoral português, no inverno, integra-se na pobreza e no desespero do resto do país. A mesma negrura beiroa, a mesma resignação cristã, os mesmo trapos a tapar as vergonhas.
O mar das sereias citadinas é uma degradação terapêutica que sempre me meteu pena. Mas o mar dos pescadores aterrados, e ele próprio gelado de remorsos, amei-o sempre como um testemunho pungente de que não há franjas de seda a suavizar a estamenha da manta que nos agasalha.
Palheiros de Mira, 8 de Maio
De cada vez que vou ao mar, é como se entrasse no meu cemitério ideal. Que grande túmulo para um poeta!
Miguel Torga – Diário V, pág. 16, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1973

S. Pedro do Moel, 23 de Maio
TENTAÇÃO
Mar,
Sepultura sonora:
Era em ti a boiar,
Que eu gostaria de dormir agora.
Miguel Torga - Diário V, pág. 21- 3.ª Edição Revista, Coimbra/1973

Caldelas, 28 de Agosto 
GOETHE
Último deus que andou sujo de lama
Junto de nós, divino e curioso
Das nossas insofridas amarguras,
Viu que frágeis e tristes criaturas
Eram homens mortais.
Que loucos e pequenos animais,
Perdidos em quesílias e procuras.
Que folhas e que frutos outonais
Já vendidos à morte, como estrume.
Rosas meladas, sem nenhum perfume
De Primavera.
Lenha cortada, que já sente o lume
Que a espera.
Então, compadecido e devotado,
Demorou-se mais tempo neste mundo
A lutar pela nossa eternidade.
E deixou-nos o plano dessa guerra
Que é preciso fazer:
Criar o céu na terra
E viver!
Miguel Torga - Diário V, pág. 43, 3.ª Edição Revista, Coimbra/1973

Fotografia da praia de Mira, 1977

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